The Project Gutenberg EBook of Flores do Campo, by João de Deus This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.net Title: Flores do Campo Author: João de Deus Release Date: December 23, 2008 [EBook #27599] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLORES DO CAMPO *** Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) Notas de Transcrição Foram corrigidos pequenos erros de impressão, sem que seja feita qualquer nota dessa correcção, visto que em nenhum dos casos a correcção altera o significado do texto. Para facilitar a identificação de cada poesia nesta edição electónica, foi adicionado o seguinte marcador como divisão entre elas: * * * * * FLORES DO CAMPO A propriedade d'este livro pertence, no Brazil, ao snr. Joaquim Augusto da Fonseca. João de Deus FLORES DO CAMPO 2.ª EDIÇÃO CORRECTA PORTO LIVRARIA UNIVERSAL de Magalhães & Moniz, Editores 12--Largo dos Loyos--14 1876 PORTO: 1876--TYP. DE A. J. DA SILVA TEIXEIRA 62, Cancella Velha, 62 A POESIA EMBLEMA Camões e Byron--Scepticismo e Crença Vem d'alto gozar, lirio! Noite estrellada e tepida; A vista ao céo intrepida Lança, penetra o Empyreo. Dilata os seios tumidos; Larga este terreo albergue; Nas azas d'alma te ergue; Ergue os teus olhos humidos Que vês?--Soes, de tal sorte Que os crêra tochas pallidas, Quando as guedelhas, madidas De sangue, arrasta a morte. --Transpõe-n'os; que, elevando-te, Por cada um d'aquelles, Milhões e milhões d'elles Verás alumiando-te. Ávante pois, acima Dos soes d'uma luz tremula; Alma dos anjos emula! Deus o teu vôo anima. Que vês?--Um vacuo eterno. --E n'elle?--Em ermo tumulo, Em ignea letra (cumulo D'horror) _Byron_--o inferno. --Foge.--O horror fascina-me. São reprobos que exhalam Horridos ais que abalam O inferno: oh Deus! anima-me. --Escuta-os.--Escutemol-os. Como elles bramem, rugem, E o espaço uivando estrugem... Gelam-se os membros tremulos. --Entra.--Não posso.--Arromba. --Prohibem-m'o.--Subleva-te. --Prohibe-o Deus.--Eleva-te. Acima, ingenua pomba! Que vês? A luz clareia-me. Que céo, que azul ethereo! Oh extasi, oh mysterio! Sobeja a vida, anceia-me. --Falla.--Deus! que harmonia! Aqui a alma exalta-se; A alma aqui dilata-se... _Camões!_--É a poesia. Coimbra. * * * * * A UMA CARTA ANONYMA Não sabe a flôr quem manda a luz do dia, Nem quem lhe esparge o nectar que a deleita Ao vir raiando a aurora, E ella agradece as lagrimas que aceita, E ella as converte em balsamos que envia Ao mysterio, que adora. LAMARTINE. Coimbra. * * * * * DUAS ROSAS Que bonita, meu amor! Que perfeita, que formosa! A ti pozeram-te Rosa, Não te fizeram favor. A rosa, quem ha que a veja Bandeando, sem gostar? Mas por mais linda que seja A rosa, quando se embala, Não te ganha nem iguala A ti em indo a andar. A rosa tem linda côr, Não ha flôr de côr mais linda; Mas a tua côr ainda É mais fina e é melhor. Murcha a rosa (que desgosto!) Só de lhe a gente bulir; E essas rosas do teu rosto É em alguem te tocando Que parece mesmo quando Ellas acabam de abrir. Cheiro, o da rosa, esse não, Não é mais do meu agrado, Que o teu bafo perfumado, A tua respiração. Depois a rosa em abrindo Vai-se-lhe o cheiro tambem: A tua bocca em te rindo Só o bom cheiro que exhala... E quando fallas, a falla, Isso é que a rosa não tem. Ella o que tem, meu amor? O cheiro, a côr e mais nada. Confessa, rosa animada! Que és outra casta de flôr. Os olhos só elles valem Duas estrellas, bem vês; Pois vozes que a tua igualem Na doçura, na pureza, Na terra, não, com certeza; Agora no céo, talvez. Não ha assim perfeição, Não ha nada tão perfeito, Mas é um grande defeito O de não ter coração. N'isso é que te leva a palma A rosa, sendo uma flôr --Sem voz, sem vida, sem alma, Que abre logo á luz da aurora E á noite esconde-se e chora Pelo sol, o seu amor. Ora e se a rosa, vê bem, Tem amor, não tendo vida, Será coisa permittida Tu não amares ninguem? Suppões que Deus te agradece Essa isenção, minha flôr! Deus a ninguem reconhece Por filho senão quem ama: A terra e o céo proclama Que elle é todo puro amor. Messines. * * * * * A UMA MULHER Amo-te a ti, e a Deus. Teus sonhos são riquezas Talvez e fasto. Os meus, És tu, que me desprezas. Deixal-o. Amor acaso É racional? Não é. O fogo em que me abrazo É como a luz da fé; Que além de cega, apaga O facho da razão. Ama-se e não se indaga Se se é amado ou não. Amo-te. O mais ignoro. Mas os meus ternos ais E as lagrimas que chóro Podem dizer o mais. Que chóro; se te admira. Nunca tiveste amor. Quem tem amor, suspira, E o suspirar é dôr. Ah! quando abraço e beijo O travesseiro e, assim, Acórdo e te não vejo, Vejo-me só a mim; Não sei, mulher! que anceio Se me traduz n'um ai! Confrange-se-me o seio, Rebenta o pranto e cái. Então, se por encanto Fallando em ti, mas só, Todo banhado em pranto Me visses, tinhas dó. Tinhas. A piedade É filha da mulher, Que sempre quiz metade D'uma afflicção qualquer. Havias ao teu rosto De me apertar a mim, D'encher, fartar de gosto, Todo este abysmo; sim. Vós desprezaes embora Culto e adoração De quem vos ama; agora As dôres, essas não. Messines. * * * * * A D. CANDIDA NAZARETH Por occasião da morte de sua irmã Rachel e, poucos dias depois, de sua mãi Despe o luto da tua soledade E vem junto de mim, lirio esquecido Do orvalho do céo! Tens nos meus olhos pranto de piedade, E se és, mulher! irmã dos que hão soffrido, Mulher! sou irmão teu. Consolos não te dou, que não existe Quem de lagrimas suas nunca enxuto Possa as d'outro enxugar: Não póde allivios dar quem vive triste, Mas é-me dôce a mim chorar se escuto Alguem tambem chorar. Botão de rosa murcho á luz da aurora! Que peccado equilibra o teu martyrio Na balança de Deus? Se é como justo e bom que elle se adora Quem te ha mudado a ti, ó rosa! em lirio, E em lirio os labios teus? Não enche elle de balsamos o calix Da flôr a mais humilde, e esses espaços Não enche elle de luz? Não veio o Filho seu, lirio dos valles! Só por amor de nós tomar nos braços Os braços d'uma cruz? Mulher, mulher! quando eu n'um cemiterio Levanto o pó dos tumulos sósinho: Eis, digo, eis o que eu sou. Mas quando penso bem n'esse mysterio Da virtude infeliz: vai teu caminho; Dois mundos Deus creou. Deus não dispara a setta envenenada Á pombinha que aos ares despedira Com mão traidora e vil. Imagem sua, Deus não volve ao nada, Não aniquila a flôr que ao chão cahira Lá d'esse eterno abril. Has-de, cysne! expirando alçar teu canto, Has-de lá quando a lua da montanha Te acene o extremo adeus, Voar, Candida! ao céo, e ebria de encanto, No oceano d'amor que as almas banha, Unir teu canto aos seus. Seus, d'ellas, mãi e irmã, cinzas cobertas D'um só jacto de terra... oh desventura! Oh destino cruel! Vejo-as ainda ir com as mãos incertas Guiando-se uma á outra á sepultura, E a mãi: Rachel! Rachel! Coimbra. * * * * * AMOR Amo-te muito, muito. Reluz-me o paraiso N'um teu olhar fortuito, N'um teu fugaz sorriso. Quando em silencio finges Que um beijo foi furtado E o rosto desmaiado De côr de rosa tinges; Dir-se-ha que a rosa deve Assim ficar com pejo, Quando a furtar-lhe um beijo O zephyro se atreve; E ás vezes que te assalta Não sei que idéa, joven! Que o rosto se te esmalta De lagrimas que chovem; Que fogo é que em ti lavra E as forças te aniquila, Que choras, mas tranquilla, E nem uma palavra? Oh! se essa mudez tua É como a que eu conservo, Lá quando á noite observo O que no céo fluctua; Ou quando, á luz que adoro, Ás horas do infinito, Nas rochas de granito Os braços cruzo e chóro; Amamo-nos... Não cabe Em nossa pobre lingua O que a alma sente, á mingua De voz, que só Deus sabe. Coimbra. * * * * * A DONZELLA E O MUSGO Um dia, não sei que eu tinha... Uma tristeza tamanha! E lembra-me ir á montanha, Que temos aqui vizinha, Onde em tempo me entretinha Horas e horas sósinha Quando ainda se não estranha Que n'uma teia de aranha Se prenda uma innocentinha, Ou atraz d'uma avesinha Se cance a vêr se a apanha. Depois é que o mundo falla E se mette com a vida De quem ás vezes se cala Por ser mais bem procedida. Que esta gente que faz gala Em coisa, que vê, contal-a, E sendo mal permittida Inda em cima acrescental-a, Teem a lingua comprida E bem deviam cortal-a. Vou pelo córrego acima, Subo á ponta do penedo; Que a vida só quem a estima É que da morte tem medo. A mesma tristeza anima A encarar a pé quedo A morte que se aproxima A tirar-nos do degredo, Que inda a gente se lastima De não acabar mais cedo. E alli sósinha chorando Me lembrava, ora a ventura Da minha infancia, inda quando Levava os dias brincando; Ora a desgraça futura, Que me estava annunciando Não sei se a minha amargura, Se uma nuvem, grande e escura, Que se ia no ar formando E vinha já avançando, Como que á minha procura. E ainda o pranto corria E o cabello me batia No rosto, que me doía, Tal era a força do vento; Já tudo tão pardacento A nevoa e chuva fazia Que eu olhava, mas dizia: É nuvem ou penedia Aquelle vulto cinzento? O mar brilhante algum dia Como prata luzidia Já ninguem o distinguia Da terra e do firmamento: Uivar só é que se ouvia, Mas uivar sem sentimento; E como em grande tormento Se desvaira a phantasia: --Fosse eu mar, disse; valia Mais ser coisa bruta e fria, Como a rocha onde me sento. Faz um trovão no momento Que soltava esta heresia; E áquella rouca harmonia Occorre-me um pensamento, Que me dá uma pancada O coração de tal modo, Como se o rochedo todo Desandasse na chapada. Era a voz da consciencia Que me accusava do crime De negar á Providencia A razão com que me opprime. Peço perdão, commovi-me E n'um extasi sublime Lagrimas de penitencia, Como um balsamo, uma essencia, Purificam-me e senti-me Com uma nova existencia. Ólho; as nuvens esvaíam-se: Os roncos do mar ouviam-se, Mas já mais de espaço a espaço. O sol ainda tão baço, De luz tão pouco brilhante, Que se media a compasso Como a cara d'um gigante, Descobre-se e resplandece! Ao longe o mar apparece; E tudo, mar, terra e céos Tão formoso me parece, Como se agora tivesse Sahido das mãos de Deus! No rochedo onde descança Meu corpo desfallecido, O verde musgo, vestido Sempre da côr da esperança, Agora reverdecido, Me ensina a ter confiança N'esse que do céo nos lança Em dia tempestuoso, Só para nosso repouso O arco da alliança. Pobre musgo, descuidado, Sem olhos para chorar, Sem poder alliviar Com seu pranto um desgraçado, Consolar-se e consolar! Fallas mais a meu agrado Que o livro mais afamado D'esses livros, que em lugar De nos dar consolação, Nos fazem cahir no chão Um pranto mal empregado, E inda mais amargurado Nos deixam o coração. Colhi-o, pul-o no seio, E é hoje o livro que leio. Messines. * * * * * ULTIMO ADEUS Prestes, se inda na rocha de granito D'onde em tempo me vias te sentares, Não olhes para a terra ou para os mares, Olha sim para o céo, que é lá que habito. Lá tão longe de ti, mas não do terno, Bondoso pai que os dois nos ha gerado, Só para mágoas não, que bem guardado Nos tem tambem no céo prazer eterno. Não se é só pó no fim de tanta mágoa. Senão, diga-me alguem que allivio é este Que sinto, quando á abobada celeste Alevanto os meus olhos rasos d'agua. Mentem os céos tambem? Os céos maldigo. Feras, tigres, tambem o céo povôam? Tambem os labios lá sorrindo côam Veneno desleal em beijo amigo? Mas na dôr é que os astros nos sorriem, E os homens não sorriem na desdita. Astros! fio-me em vós, e Deus permitta Que os infelizes sempre em vós se fiem. Intima voz do fundo, bem do fundo D'alma me diz (e as lagrimas me saltam): Vês os milhões de soes que o espaço esmaltam? Pisa a terra a teus pés, inda ha mais mundo. Ha depois d'esta vida inda outra vida. Não se reduz a nada um grão d'arêa, E havia de a nossa alma, a nossa idêa Nas ruinas do pó ficar perdida? --Isso que pensa e quer (até me admiro), Isso que a luz nos traz, que a luz nos leva, Isso que me abre o céo que ao céo me eleva N'um teu cançado olhar, n'um teu suspiro! Onde, não sei eu bem, mas sei que existe Deus remunerador. Depois de mortos Hemos de vêr-nos, e um no outro absortos Fartar de glorias este amor tão triste. --Tão triste, e o coração que me adivinha N'este supplicio nosso este tormento! Nunca dos labios teus minimo alento N'um só beijo bebi em vida minha! E morro sem te vêr! Cabeça doida, Desasisado amor! Sonhar afflicto Um sonho até morrer... Não: resuscito; Morto tenho eu vivido a vida toda. *** * * * * * ROSAS Trazeis-me rosas; d'onde as heis trazido, Boa velhinha e minha boa amiga? Rosas no inverno! permitti que o diga, Sois feiticeira: d'onde as heis colhido? Na primavera de meus annos, ólho, Mas vejo abrolhos e não vejo flôres: E vós colhêl-as, como as eu não colho... Sois feiticeira--enfeitiçaes d'amores. Enfeitiçaes que a formosura, crêde, Não vem da face avelludada e bella; A formosura vem só d'alma; é d'ella Que brota a fonte que nos mata a sêde. Vós sois velhinha, já não tendes côres Que o rosto animem e que os olhos prendam, Mas tendes prendas que o amor accendam, Tendes ainda no inverno... flôres. Evora. * * * * * ROSA E ROSAS A Rosa trouxe-me rosas E nada mais natural, Mas eu prendas tão mimosas É que não tenho; inda mal. Quando tinha, se me désse, Não digo mais que uma flôr, Talvez de flôres lhe enchesse Esses cofrinhos d'amor. Aguas passadas, Rosinha! Deixal-o; veja se vê N'este chão que já foi vinha Coisa que ainda se dê. Veja e escolha. Está na mesa O que ha em casa; é tirar --Tirar com toda a franqueza; Inda hão-de espinhos sobrar. Mas se espinhos, mas se abrolhos Lhe não agradam, amor! Mire-se bem nos meus olhos, Que ha-de ahi vêr... uma flôr. Evora. * * * * * A HERMANN Por occasião d'um beneficio a um asylo «Conchega a mãi ao peito o filho caro; Estende a pomba as azas no seu ninho Pelos filhinhos seus. Embala o arbusto agreste; o fructo amaro. Guia a bussola o nauta em seu caminho, Como um dedo de Deus. «Bebe a nuvem no mar, no rio a fera; Acha o tigre covil na antiga Hyrcania, Hoje em dia, Ghilã; Renasce a planta á luz da primavera, E no calix da flôr gotta espontanea Cahe á luz da manhã. «Só eu no mundo um gosto em vão pretendo: Guebro entre os persas, entre os indios pária, Judeu entre christãos, Só eu debalde ao céo as mãos estendo, Como o naufrago á praia solitaria Debalde estende as mãos. «Tenho no livro azul onde Elle escreve Esse nome, que nunca pronuncia Quem bem o soletrou, Mil vezes tenho lido que não deve Queixar-se mais que a flôr que vive um dia Um verme como eu sou. «Porém, chorando, as mágoas diminuem. Custa muito soffrer sem que um gemido Ah! solte a nossa dôr. E se aos olhos as lagrimas affluem, É que este allivio nosso é permittido. O céo orvalha a flor.» Diz isto o orphão. De alma os ais lhe sahem, Como os suspiros de harpa eolea em ermo. Ninguem no mundo o ouviu. Mas, se a teus pés as lagrimas lhe cahem, Tocou a mão de Christo a mão do enfermo; O Lazaro surgiu. Por isso, Hermann! espantas-me. Não scismo Nos prodigios da milagrosa vara Que o Senhor Deus te deu. Teu coração, Moysés do christianismo! Tua alma é que eu admiro, e te invejára Se o que é teu... fosse teu. Coimbra. * * * * * PRESENTIMENTO Emilia! não vês a lua Como vacilla e fluctua, Ora avança, ora recúa, E não ha passar d'alli? Tu és a imagem d'ella; És tão sympathica e bella, Meiga e timida, que ao vêl-a Me lembra sempre de ti! Tu és o botão de rosa Que abraçado á mãi formosa Só folga, só vive e goza N'aquella triste união; Treme até de ouvir a aragem Passar por entre a folhagem: Emilia! tu és a imagem Do mais timido botão. Mas embora: o tempo gira. Um dia o botão, que aspira O ar da manhã... suspira E levanta o collo ao céo: Vê vir raiando a aurora, Abre o seio á luz que adora, Correm-lhe as lagrimas, chora... Chora o tempo que perdeu! Porque elle, Emilia! não teme Que a luz da aurora o queime; Elle suspira, elle geme Por vêr a luz que o creou. Nem tambem a lua pára: Se algumas vezes repara N'uma nuvem menos clara, É um momento e... passou. Não ha existencia alguma Que não tenha amor; nenhuma; Porque o amor é, em summa, Essencia de todo o sêr. Ha sempre quem nos attráia. Mil vezes que a onda cáia, Ha uma rocha, uma praia Aonde a onda vai ter. Tu andas já presentida D'essa voz que te convida A encetar n'esta vida Ai! uma vida melhor... E em breve desenganada D'essa existencia isolada, Darás n'alma franca entrada A sentimentos de amor! Silves. * * * * * MARINA I APPARIÇÃO Como esse olhar é dôce! Dôce da mesma sorte Como se nunca fosse Toldado pela morte: Como se alumiasse O sol ainda em vida As rosas d'essa face... Agora carcomida. Colhesse-as eu mais cedo E logo que alvorece; Já não tivesse medo Que a terra m'as comesse. Mas pura, como a neve Que ás vezes cahe na serra, É que a nossa alma deve Tambem voar da terra. Gelasse a morte fria A mão profanadora Que te ennublasse um dia A luz que dás agora. É n'essa côr tão linda, Rosa da madrugada! Que sinto a alma ainda Andar-me enfeitiçada. Se um dia nos meus braços Te desbotasse as côres, Passavam os abraços... Passavam os amores! Oh! não: mil vezes antes No céo lá onde habitas, E os rapidos instantes Que vens e me visitas N'este degredo nosso, Que tanta gente estima, E eu, só porque não posso, Não largo e vou lá cima. Vem tu cá baixo, abala, Deixa em podendo o collo Tão terno que te embala, E vem-me dar consolo. Como essa imagem pura Ah! sobrevive ao nada E escapa á sepultura, Tão fresca e perfumada! Nunca uma noite eu deixe De estar a vêr que existes, Em quanto me não feche O somno os olhos tristes. E n'esse largo espaço Que te não vejo, espero Lhe contes o que eu passo N'este aspero desterro: Que assim que te não veja É noite fria e escura, Noite que mette inveja Á mesma sepultura! II SAUDADE Em acordando agora, O meu contentamento É vêr em cada aurora Um dia de tormento! Podesse eu dar-te a prova Dos dias que me esperam, Lançando-me na cova Onde elles te pozeram! Lançassem-me algum dia Ao pé, que de repente O coração te havia De ainda pular quente... A face cobrar logo A fórma e côr perdida, E a bocca toda fogo Ah! inspirar-me a vida! Supplíca, ó anjo! implora Ao Pai universal Que me deixe ir embora D'este horroroso val De lagrimas amargas, E turvas de tal modo, Como umas nuvens largas Que tapam o céo todo! III ETERNIDADE Inferno e céo, conforme A nossa fé, confesso Que é um mysterio enorme, É um mysterio immenso. Mas um mysterio é tudo: Folhinha d'herva, e estrella, Não ha comprehendêl-a! É contemplal-a mudo. E a herva, como existe, A mim quem m'o diria, Se a luz que me alumia Nem sabe em que consiste? Mas uma coisa sabe O que a cabeça ignora --O coração... que mora Em peito onde não cabe. Ha uma luz mais clara Que a luz do pensamento: A d'essa imagem cara... A d'este sentimento! IV ... 21 DE SETEMBRO Ha uma hora ou mais, Marina! que contemplo A casa de teus paes Que é para mim um templo. Está a porta aberta, E vejo alumiada A parte descoberta Da casa da entrada. Lá andam a passar Do quarto onde acabaste Á casa de jantar Os vultos, que deixaste. Os vultos, que os vestidos Tão negros que pozeram, De luto, tão compridos, Não sei que ar lhes deram! A tua bella irmã, A tua piedade, A rosa da manhã, A flôr da mocidade, Quem lhe diria a ella, Tão cheia de alegria, Que haviamos de vêl-a Assim já hoje em dia! É esta vida um mar, E bem se póde a gente, Marina! comparar A rapida corrente, Que vai de lado a lado Por esses valles fóra Sem nunca lhe ser dado Ter a menor demora. Pára, quando a engole Aquelle mar sem fundo; Nem pára; é como o sol E como todo o mundo... Ahi não pára nada, Tudo viaja e anda, Que a ordem lhe foi dada, E dada por quem manda. Chega a corrente lá, Engole-a logo a onda: Depois, que é d'ella já? A nuvem que responda. Que a nuvem que nos passa Pela manhã nos ares, Era hontem a fumaça Que andava n'esses mares; E a nevoa, que tu vês Nas ondas fluctuantes, Corria-nos aos pés Talvez um dia antes. A agua é que no giro Em que anda eternamente Não deu nunca um suspiro Em prova de que sente. ..................... * * * * * N'UM ALBUM Pedindo-se ao author uma poesia Não me admira a mim que o sol, monarcha De indisputavel throno, e throno eterno Em céo e terra e mar; Que em seu imperio o mundo inteiro abarca Abaixe á pobre flôr seu dôce e terno, Mavioso olhar. Não me admira a mim que a crystallina, Tão pura, onda do mar, que espelha a face Do astro creador, Que essas asperas rochas cava e mina, Á praia toda languida se abrace E toda amor! Mas sendo vós um sêr mais precioso Do que onda e sol--um anjo de poesia Inspirada e que inspira; Que ás minhas mãos, das vossas, tão mimoso, Delicado penhor descesse um dia É que me admira. Quizera nos meus cofres de poeta Ter as riquezas todas do Oriente, E com mãos liberaes Expulsar esta duvida que inquieta Um grato coração que apenas sente E... nada mais! De limpido diamante e fio de oiro, Quizera-vos tecer collar que á aurora Vencesse em brilho e côr; Mas o poeta, o unico thesoiro Que tem, ah! são as lagrimas que chora E o seu amor. Eu vol-o dou. E lá do espaço immenso Se amada estrella olhar piedoso envia A quem da terra a adora; Se o sol aceita á flôr humilde incenso; Ha no amor tambem muita poesia... Minha senhora! Evora. * * * * * Beijo na face Pede-se e dá-se: Dá? Que custa um beijo? Não tenha pejo: Vá! Um beijo é culpa Que se desculpa: Dá? A borboleta Beija a violeta: Vá! Um beijo é graça Que a mais não passa: Dá? Teme que a tente? É innocente... Vá! Guardo segredo, Não tenha medo... Vê? Dê-me um beijinho, Dê de mansinho, Dê! Como elle é dôce! Como elle trouxe, Flôr! Paz a meu seio; Saciar-me veio, Amor! Saciar-me? louco... Um é tão pouco, Flôr! Deixa, concede Que eu mate a sêde, Amor! Talvez te leve O vento em breve, Flôr! A vida foge. A vida é hoje, Amor! Guardo segredo; Não tenhas medo Pois! Um mais na face E a mais não passe! Dois... Oh! dois? piedade! Coisas tão boas... Vês? Quantas pessoas Tem a Trindade? Tres! Tres é a conta Certinha e justa... Vês? E o que te custa? Não sejas tonta! Tres! Tres, sim. Não cuides Que te desgraças: Vês? Tres são as Graças, Tres as Virtudes, Tres. As folhas santas Que o lirio fecham, Vês? E que o não deixam Manchar, são... quantas? Tres!... * * * * * Thuribulo suspenso inda fluctuo, Em quanto a alma em incenso restituo; Mas, quando como fumo que se esvai, Minha alma! vás teu rumo... sobe e vai. Vai d'estas densas trevas, d'esta cruz, Levar-lhe... quanto levas, pobre luz! Amor, que em mim não cabe, vai depôr Em Deus, e Deus bem sabe se era amor; Se d'outra flôr o calix mais libei Por esses quantos valles divaguei; Se um nome em igneo traço li no céo, Nas ondas e no espaço, mais que o seu... Deus sabe se eu dos montes vi tambem Nos vastos horisontes mais alguem; Nos tristes e risonhos dias meus, Se alguem vi mais em sonhos, que ella e Deus. Porém quem é que apanha o aereo véo Da nuvem da montanha, se é do céo? Se á terra a nuvem desce, quando vai Tocar-se-lhe, desfez-se como um ai. Coimbra. * * * * * Luz d'intima influencia, Oh fugitiva luz! Luz cuja eterna ausencia É minha eterna cruz. Podessem-te, ainda antes Do meu extremo adeus, Meus olhos fluctuantes Vêr lampejar nos céos. Se ainda n'esse espaço, Tão longe onde tu vás, Visse um reflexo baço Da pura luz que dás; Tornaram-se-me estrellas As lagrimas de dôr; E lagrimas são ellas... Sim, lagrimas d'amor! Vê n'esse espaço immenso Os astros como estão Bem como eu estou, suspenso Por intima attracção. Porque ha quem os attráia; É essa eterna paz Que a mim de praia em praia A suspirar me traz. Converte-me este inferno Em azulado céo, Ou quebra o laço eterno Que a tua luz me deu; Ou antes muda em espuma De nunca estavel mar Esta alma que alma alguma Póde exceder em amar. Em cinza, em terra, em nada, Meu sêr converte, ó luz, Mas sempre, sempre amada, Deliciosa cruz! Portimão. * * * * * RESPOSTA A A. DO QUENTAL Em fumo se vai tudo, amigo! Olhando Para as nuvens do céo, nuvens d'aquellas, E parece-me ainda que mais bellas, Anda a gente fazendo e desmanchando. Dá-me uma saudade em me lembrando O bello tempo que passei com ellas, Por essa immensa abobada de estrellas, Por esse mar de fogo viajando... Andasse ainda eu lá, que não me havia De vêr por estes charcos atolado, Onde nem sol nem lua me alumia. Andasse ainda eu lá, desenganado Mesmo já como estou de achar um dia A patria d'aonde ando desterrado. * * * * * Pois se o homem, se anjo e nume, Planta e flôr, Dá seu canto, luz, perfume, Crença e amor; Pois se tudo sobre a terra Que ame alguem, Rosa ou espinho, quanto encerra Dá, se o tem; Se os carvalhos, nus, medonhos, Veste abril; Se inda a noite presta aos sonhos Graças mil; Se onde ha ramo, voz uma ave Desprendeu; Se onde ha folha, gotta suave Cahe do céo; Se na praia, quando a onda Vem de lá, Beijos, antes que se esconda, Mil lhe dá; Tambem, anjo meu saudoso! Te hei de emfim Ah! dar quanto de precioso Sinto em mim! Dou-te o nectar, que me acalma; Toma-o tu! Sim, meu pranto; mais uma alma Que eu possuo! Dou-te os sonhos meus ardentes, Mas leaes; Dou-te as notas mais cadentes Dos meus ais! Do que ha lindo, tudo quanto Me seduz; D'esta vida, riso e pranto, Noite e luz! Dou-te o genio meu, que á sorte Vês fluctuar Sem mais véla, sem mais norte Que esse olhar! Dou-te a lyra, que me inspiras, Sonho meu! Que suspira, se suspira, Flôr do céo! Dou-te; aceita: tudo é santo, Tudo, flôr! Dou-te uma alma toda encanto, Toda amor! V. HUGO. Coimbra. * * * * * FLÔR E BORBOLETA Tu vôas, borboleta! e que eu não possa Voar, amor! Diversa como é n'isto sorte nossa! Dizia a flôr. No valle, ambas irmãs, nascidas fomos; És como eu sou; E amamo-nos, e flôres ambas somos, Mas eu não vôo. A ti leva-te o ar; prende-me a terra A mim; e eu Como hei-de perfumar-te em valle e serra, E lá no céo!... Mais longe inda tu vás, por outras flôres... Girar, talvez, Em quanto a minha sombra, meus amores! Gira a meus pés! E vens-me vêr depois, mas vaes-te embora, Sabendo, assim, Que em lagrimas me encontra sempre a aurora! Pobre de mim! Acabem-se estas mágoas, meu thesoiro E meu amor! Cria raiz ou dá-me as azas de oiro, Celeste flôr! V. HUGO. Coimbra. * * * * * REMOINHO Olha como embrulhado Que está ainda o céo E o chão, como ensopado Da agua que choveu... Foi um diluvio d'agua; E o furacão, que fez, Emilia! até dá mágoa Tantos estragos: vês? Esta infeliz víuva, Foi-lhe o telhado ao ar; Depois, já nem da chuva Tinha onde se abrigar. De mais a mais sósinha, Sem ter nenhum dos seus Aqui ao pé; ceguinha... Bemdito seja Deus! Além n'aquelle serro Parece que raspou Com uma pá de ferro A terra que encontrou. Nem um só pé de trigo És lá capaz de vêr. Já eu disse commigo: Como póde isto ser? As arvores arranca O vento muito bem; Serve-lhe de alavanca A rama que ellas tem. Vem de lá elle e, topa N'uma arvore, o que faz? Enrola-se na copa E, tronco e tudo, zás! Que as folhas não são nada, Uma por uma, não; Mas já uma pernada... Tão poucas ellas são? Vê lá se o teu cabello É para comparar; Mas, possa alguem sustel-o, Levanta-te no ar. Aqui um loureirinho, Que era o que havia só, Encontra-o no caminho, Ia-o fazendo em pó. D'aqui passa, á maneira Assim d'um caracol, Áquella farrobeira Põe-lhe a raiz ao sol. Aquelle enorme tronco Quiz resistir, depois, Ouviu-se um grande ronco, Quando o eu vejo em dois. Andava a rama toda, Emilia! assim, vês tu? Á roda, á roda, á roda, Eis senão quando, rhuh! Foi quando veio o outro Urrando como um boi, Oh que horroroso encontro! Então é que ella foi. Vês uma cobra enorme Á calma, quando está Grande calor, conforme As tenho visto já? Que não tem ar avonde, Falta-lhe já o ar, Quer sangue ou agua onde Se possa refrescar; Anceia-se, sacode O corpo todo a vêr Se vôa, mas não póde; Voar não póde ser; E como não supporta Já o calor do chão, Ao vêr-se quasi morta De raiva e afflicção, Apenas finca a ponta Do rabo em terra, e sái; E faça-se de conta Que é a voar que vai N'aquellas roscas todas Que, olhando-se-lhes bem, São outras tantas rodas Em cima d'onde vem; N'aquelle parafuso --Aquelle rodopio, Á roda como um fuso Suspenso pelo fio; Com a cabeça chata, Aquelle olhar feroz, Aquelle olhar que mata Sempre de fito em nós? Assim d'essa maneira É que elle vinha, o tal; Salta-lhe á dianteira Este de força igual; E assim que se avistaram, Não sei o que lhes dá; Ficam suspensos, param, Como com medo já; Aquelles sorvedouros, Em vez de remoinhar, Parecem-se dois touros Jogando a terra ao ar; Ouvia-se a oliveira Zunir no ar, então, D'um para o outro inteira, Nem bala de canhão; E assim se vão chegando Cada vez mais, até Que eu ólho, eis senão quando Vejo... mas vejo o que? . . . . . . . . . . . . . . . Messines. * * * * * AMORES, AMORES... Não sou eu tão tola Que cáia em casar; Mulher não é rola, Que tenha um só par: Eu tenho um moreno, Tenho um de outra côr, Tenho um mais pequeno, Tenho outro maior. Que mal faz um beijo, Se apenas o dou Desfaz-se-me o pejo, E o gosto ficou? Um d'elles por graça Deu-me um, e depois, Gostei da chalaça, Paguei-lhe com dois. Abraços, abraços Que mal nos farão? Se Deus me deu braços, Foi essa a razão. Um dia que o alto Me vinha abraçar, Fiquei-lhe d'um salto Suspensa no ar. Amores, amores. Deixál-os dizer; Se Deus me deu flôres, Foi para as colher. Eu tenho um moreno, Tenho um de outra côr, Tenho um mais pequeno, Tenho outro maior. * * * * * FABULA Um dia os deuses, cada qual uma arvore, Á sua guarda consagraram: Jupiter Esse o carvalho, a murta Venus, Hercules Lá esse o alemo, e o loureiro Apollo. Vendo-as Minerva todas infructiferas: Que é isto? exclama. Jupiter acode-lhe: Senão, diriam, filha! que as guardavamos Só pelo fructo.--Que me importa digam-no; É pelo fructo que a oliveira escolho. Minerva! brada o pai d'homens e deuses, És quem, de todos, sabes mais sem duvida; No que não luza... mal fundada gloria. _Honra sem proveito Faz mal ao peito._ PHEDRO. Coimbra. * * * * * BOAS NOITES Estava uma lavadeira A lavar n'uma ribeira, Quando chega um caçador. --Boas tardes, lavadeira! --Boas tardes, caçador! --Sumiu-se-me a perdigueira Alli n'aquella ladeira, Não me fazeis o favor De me dizer se a bréjeira Passou aqui a ribeira? --Olhai que d'essa maneira Até um dia, senhor, Perdereis a caçadeira, Que ainda é perda maior. --Que me importa, lavadeira! Aqui na minha algibeira Trago dobrado valor. Assim eu fôra senhor De levar a vida inteira Só a vêr o meu amor Lavar roupa na ribeira... --Talvez que fosse melhor, Vêr... coser a costureira! Vir, de ladeira em ladeira, Apanhar esta canceira E tudo só por amor De vêr uma lavadeira Lavar roupa na ribeira... É escusado, senhor! --Boas noites... lavadeira! --Boas noites, caçador!.. Messines. * * * * * GASPAR Ora se não sei eu quem foi teu pai! Fidalgo: sei perfeitamente bem. O que eu não sei, Gaspar! é o que vem N'esta vida fazer quem já lá vai. Já se vê que é aos paes que a gente sái. Tal pai, tal filho; sim, duvída alguem Que um pai se é como o teu, homem de bem, Tu és homem de bem como teu pai? D'isto não ha quem possa duvidar. Mas queres um conselho que eu te dou? Não mexas n'isso... cala-te, Gaspar! Que eu, cá por mim, bem sabes como eu sou, Mas é que outro talvez mande tirar Certidão de baptismo a teu avô. Coimbra. * * * * * Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo, Á rosa envie o aroma; E lá quando alta noite a lua assoma, O rouxinol carpindo! Que pela face a lagrima resvale De quem no exilio geme; E quando a propria sombra o homem teme, Que a mãi seu filho embale. Deixa que ao espaço immenso os olhos lance O sol antes que expire; Que pelo norte a bussola suspire E nelle só descance. Amam leões e tigres. Não ha nada, Anjo! que a amor se esconda. Beija a pomba o seu par; e abraça a onda A rocha inanimada. Deixa que a nuvem negra tolde a lua Se a leva a tempestade; Deixa que eu te ame a ti, cara metade, D'esta alma toda tua! Coimbra. * * * * * CARTA Maria! vêr-te á porta a fazer meia, Olhando para mim de vez em quando, É o que n'esta vida me recreia. Acordo até de noite suspirando Por que rompa a manhã e tenha o gosto De te vêr já tão cedo trabalhando. Desde pela manhã até sol-posto Que não tens de descanço um só momento; Por isso tens tão bella côr de rosto. E eu pallido, Maria! O pensamento Não é trabalho que nos dê saude, Esta imaginação é um tormento. Que bello tempo aquelle em quanto pude Levar, como tu levas, todo o dia N'essa vida chamada ingrata e rude! Nunca soube o que foi melancolia, Nunca provei as lagrimas salgadas Com que a nossa alma as penas allivia; Andava sim por essas cumiadas Ao sol, á chuva, muita vez, sósinho, Vendo os valles, das rochas escarpadas; Descendo pelo córrego estreitinho, De pontal em pontal, cortando o matto, Pelas chapadas, fóra de caminho; Mas não era que já o teu retrato Me andasse a mim no coração impresso, Onde hoje o trago no maior recato, E um desengano teu que não mereço Me tivesse tirado a fé tão dôce D'alcançar algum dia o que appeteço. Não foi, não, a paixão que assim me trouxe Tão erradio a mim, digo a verdade E nem eu te negava se assim fosse. É que a gente na sua mocidade Não cabe em si, não pára de contente, E assim fui eu na flôr da minha idade. Tu eras n'esse tempo simplesmente A flôr que vai nascendo e mais valia Seres tão tenra ainda e innocente. Já esse lindo pé que tens, Maria! Esse quadril tão largo, e cinta estreita, Me não vinha á idéa noite e dia; Esses encontros de mulher perfeita, Esse peito redondo e arqueado Como o de pomba farta e satisfeita. Talvez vivesse então mais socegado, Ou já que minha sorte é sempre triste Ao menos não andasse enfeitiçado. Esse bello pescoço, não existe Outro assim torneado: o rosto é lindo E a tão meiga expressão ninguem resiste. A bocca é tão vermelha que, em te rindo, Lembra-me uma romã aberta ao meio Quando já de madura está cahindo. Esses olhos azues... que olhar! Receio E desejo estar sempre a contemplal-o; Não ha mais dôce e mais custoso enleio: Eu não oiço fallar então, nem fallo De enlevado que estou e, juntamente, Gemendo e abafando os ais que exhalo. Oh nuvem da manhã resplandecente, Manto real de sêda delicada, Cada fio um grilhão que prende a gente. Bem podias, Maria! andar tapada Só com o teu cabello, á semelhança Do sol em nuvem de manhã doirada. É tudo encantador. A gente cança, Cança de estar olhando e sempre vendo Um novo encanto a cada olhar que lança. E se essa linda voz nos sái dizendo As mimosas palavras que costuma, Sente-se a gente logo derretendo; Que além d'um rosto tão perfeito, em summa Coube-te em sorte um coração perfeito E em ti não ha, Maria! falta alguma. Oh que ditoso, alegre e satisfeito Não viverá o homem que algum dia Sentir pular-te o coração no peito, E que em deliciosissima agonia, Vendo-te já os olhos desmaiando Como desmaia o céo á luz do dia, Nas azas da ventura atravessando Os espaços d'um extasi ineffavel Abraçado comtigo fôr voando Lá para onde tudo é bello e estavel! Messines. * * * * * --Dá-me esse jasmim de cera, Minha flôr? --Mas e depois se lh'o dera, Meu senhor? --Depois? era uma lembrança. --Mas de quê? --D'uma tão linda criança, Já se vê. --Oh tão linda! Mas, parece, Sendo assim, Que inda quando lhe não désse Tal jasmim... --Não me esquecia, de certo. --Nunca já? --Nunca.--Nunca, é muito incerto, Mas... vá lá. --E a rosa, que bem lhe fica, Dá-m'a, flôr? --Oh a rosa, a rosa pica, Meu senhor! Messines. * * * * * MARGARIDA Oh que formosos dias, Margarida! Esses da tua vida; E que nublados Meus dias desgraçados! Nasci tambem assim risonho e meigo, Mas hoje apenas chego O calix da ventura Á bocca ancioso, Torna-se a agua impura E o liquido que bebo Venenoso, Sim, venenoso o liquido que bebo. Nem eu concebo Como Deus me creasse Para tormento eterno; Elle que tão affavel, meigo e terno Te beija a ti a face E te embala no collo, Margarida! A mim dar-me esta vida... Mas vejo á sombra d'altos edificios Miudissimas flôres De tão subtís e delicadas côres Que se o sol lhes chegasse Talvez que nem resquicios Lhes ficasse. Com uma d'essas azas, estendida, Me tapavas tu todo, E d'esse modo, Com esse escudo, Eu ria-me de tudo E levava esta vida alegremente. Tenho essa fé. Vejo tambem a flôr que nasce ao pé D'agua corrente, Ir tão suavemente Levada pela agua! Talvez até sem magua De deixar sua mãi. D'esse modo tambem, Amparando-me tu a mim nos braços, Eu seguia-te os passos, Fosse por onde fosse; E d'essa sorte Até a morte Me seria dôce. Messines. * * * * * NO LEITO NUPCIAL Dorme, estatua de neve, Vergontea de marfim! Tocar que impio se atreve No que é sagrado assim? Dois são: o mais, mysterio Vedado á terra. Deus Talvez do solio ethereo Nem baixe os olhos seus. Respeita-os, tapa-os, como Japhet e Sem, o pai... Pende, sagrado pomo! A vista ergue-se e cai. Ergue-se e cai, conforme A lei, que o manda assim. Ergue-se e... Dorme, dorme, Vergontea de marfim! Mas dize: o espelho a imagem Te estampa mal te vê; Beija-te o seio a aragem, Doira-te o sol; porquê? Não segue acaso a sombra Teu corpo sempre, flôr! E pois, porque te assombra Meu insensato amor? Ás vezes passas tremula Como sagrada luz; E os olhos dizem: vemol-a Como no alto a cruz. Perdoa se isto exprime Maldade aos olhos teus; Perdoa-me se é crime... Amo tambem a Deus. E á tarde quando o albergue, No solitario val, Incenso queima e se ergue D'Abel o fumo igual; Da pomba solta o vôo, Baixa-me um olhar teu E dize-me: perdôo; Sim, tudo aspira ao céo! Coimbra. * * * * * A MINHA MÃI Patria! berço d'amor, que a alma embala Em quanto a luz vital nos illumina, E onde só descançado se reclina Quem, longe d'ella, dôr contínua rala... Se n'essa essencia, mãi! que a flôr exhala Na essencia d'uma flôr d'essa collina, Vês lagrimas d'amor que dentro a mina, Com saudades de quem do céo lhe falla: Se quando, o céo buscando, o fumo ondeia, Quando esse valle o sol deixa indeciso, Vês como fumo e flôr aspira, anceia Um pai, um Deus, um céo, um paraiso, Ah! tendo eu tudo, tudo, em minha aldeia, Vê tu se labio meu desfolha um riso! Coimbra. * * * * * BEATRIZ Tu és o cheiro que exhala Ao ir-se abrindo uma flôr, Tu és o collo que embala Suas primicias d'amor. Tu és um beijo materno, Tu és um riso infantil; Sol entre as nuvens do inverno, Rosa entre as flôres d'abril. Tu és a rosa de maio, Tu és a flammula azul, Que atam á flecha do raio As nuvens negras do sul. Tu és a nuvem d'agosto, Meu alvo vello de lã! Tu és a luz do sol-posto, Tu és a luz da manhã. Tu és a timida corça Que mal se deixa avistar; Tu és a trança que a força Do vento leva no ar. És a perola que salta Do niveo calix da flôr; És o aljofar que esmalta Virgineas rosas d'amor. És a roseira que a custo Levanta os cachos do chão, És a vergontea do arbusto, Anjo do meu coração! Tu és a agua das fontes, Tu és a espuma do mar, Tu és o lirio dos montes, Tu és a hostia do altar. És o pimpolho, és o gommo, És um renovo d'amor; Tu és o vedado pomo... Tu és a minha Leonor... Tu és a Laura que eu amo, E a minha Taboa da Lei, E a pomba que trouxe o ramo, E a margarida que achei. És o lirio, és a bonina Dos valles do meu paiz; És a minha Catharina... És a minha Beatriz! Coimbra. * * * * * INNOCENCIA Encolhe as azas, que te abrazas, louca! O fogo mata a quem o gera, attende; Foge e, se a vida te aborrece, estende Um braço aos anjos, que a distancia é pouca. Porque uma nuvem, onda transitoria Do mar immenso, vem pousar na serra, Não fica a nuvem pertencendo á terra: Tu és o anjo que desceu da gloria. Estranhas forças para ti me attrahem; E ás vezes cedo, tua cinta enleio; Teus olhos beijo; mas, contemplo o seio, Tua alma dorme, e os meus braços cahem... Desfallecidos, flôr celestial! Como ante um berço cahe a foice erguida, Se ha n'elle mais do que uma simples vida, Se ha innocencia que mil vidas val. Oh! não: teus labios o meu fel não provem: Outros os lirios d'essa face esmaguem; D'outros mãos impias teu sorriso apaguem, Em quanto os labios tuas graças louvem. Já no meu berço d'innocencia pude Pesar as joias, que hoje em vão te invejo: Provei os favos de illibado pejo, Sei o que perde quem o vicio illude. Alcantil ingreme, onde o raio é certo, Contém mais seiva, que inda o musgo cria: Quanto de fertil em nossa alma havia Só deixa o ermo da saudade aberto. Cahir no abysmo de intimos pezares D'essas alturas onde mal te vejo, O ponto estava derreter n'um beijo O fio de oiro que te manda aos ares. N'esses dois cofres, n'esse collo aonde Tantas riquezas enterrei ciumento (E que alta noite vela o pensamento Pelo crystal que o coração te esconde) Em oiro em barra, fina prata e quanto Coalha o vasto e opulento Oriente, Fôra em ruinas encontrar sómente Carvão, se um dia te quebrasse o encanto. Casta innocencia, de Deus filha e bella Entre as mais bellas! virginal aroma! Rosa ineffavel, que, se á luz assoma, Haste e raiz apodreceu com ella! Sol, que uma vez em nossa vida passas! Flôr, que uma e neutra, como Deus, não gera; Que se abre morre, mas sem prole, inteira Com todo o côro das virgineas graças: Ao vêr-te, embora meu olhar te envia O impio incenso de Nadab, ajoelho... Rosa da face e, não só rosa, espelho Da face occulta de quem espalha o dia! Se por teus membros orvalhadas flôres Prodigas mãos da formosura entornam, Flôres mais bellas o teu seio adornam... Vós, lirios d'alma, virginaes amores! O céo me encanta, como encanta o inferno. Mysterio... espaço... mente exploradora! Morre nas mãos o que a nossa alma adora --Vago, impalpavel, infinito, eterno! Evora. * * * * * A Escriptura Sagrada Lá diz que uma mulher má Não ha fera, não ha nada Peor no mundo: e não ha. Uma lá da minha aldeia, Que era muito impertinente, Muito má (e muito feia) Morre um dia de repente. Morreu; desgraçadamente Mais tarde do que devia; Mas em summa toda a gente Teve a maior alegria. Passados annos (é boa!) Foi-lhe preciso ao coveiro Abrir a cova, e achou-a Ainda de corpo inteiro, Ainda rosas na face, Ainda signaes de vida... Milagre! coisa sabida; Pois mais fresca que uma alface Ha tanto tempo enterrada, Devendo estar reduzida A pó, terra, cinza e nada... Vem dar parte; e corre a vêl-a O povo atraz do prior; E passam logo a trazel-a Em cima do seu andor E a pol-a n'uma capella De grande veneração; (Elles ás costas com ella, E elle a cantar canto-chão;) Mas seja lá o que fôr, O que é certo e mais que certo É que santa como aquella E nem de mais devoção, Não ha por alli tão perto. E dizem que não ha santos Como nos tempos passados! E cá opinião minha Que muitos (quantos e quantos!) Que ahi morrem desprezados, Se não são canonisados É que está cheia a _Folhinha_. Messines. * * * * * A UM NUNO Provando a existencia de Deus a pobres camponezes Ora a provar que ha Deus, Nuno! isso é teima: Pois ha alguma ovelha no rebanho Que não saiba que só a mão suprema Creava um animal d'esse tamanho! * * * * * A *** Pois se como sempre fomos Somos Pétalas da mesma flôr, E o que eu sinto, ou eu me illudo, Tudo Tambem sentes, gosto e dôr; Que te arraza os olhos d'agua? Magua Em que eu não deva tocar? Oh! mas se ha quem a suavise, Dize, Vou-lhe um suspiro levar. Não se alcança, não se avista, Dista D'aqui muito o allivio, ou não? Dos teus olhos muito; e pouco, Louco! Pouco do teu coração. Sei o que vai em teu seio; Sei-o Porque em materia d'amor, Debalde os labios se calam! Fallam Ainda os olhos melhor! Batalha. * * * * * LUZ DA FÉ Tu, sol! já não me alegras Como alegravas, não: Vós, sim, ó nuvens negras, Relampago e trovão! Quando o trovão me aterra, Recordo-me de Deus; Abalo cá da terra E vou por esses céos: E lá n'essas alturas, Por onde só a fé, Em regiões tão puras, Nos deixa tomar pé; Voar, pairar nos ares Como uma aguia cá, De lá só vejo os mares, E é porque a luz lhes dá. O mais como se apanha E empolga com a mão, Seja a maior montanha, Seja a maior nação; O mais fica no fundo D'esse infinito mar; O mais pertence ao mundo, É escusado olhar. Deus deixa ás creaturas Cá baixo a sua cruz, E fecha as almas puras N'um circulo de luz. As chagas, as miserias Cá d'este lamaçal, Nas regiões ethereas, Lá não se avista tal. É só a luz, que foge, Mais uma irmã que tem --A alma, que até hoje Não a prendeu ninguem; São essas duas luzes (Qual d'ellas tão subtil Que ás forcas e ás cruzes Do despota mais vil, Se escapam de tal modo Que é de o fazer raivar) Cá d'este mundo todo O que se vê brilhar! Porque uma e outra aspira Continuamente ao céo, A alma que suspira, E a luz que Deus nos deu. Porque uma e outra é pura, Perpetua e immortal; E a sua formosura, Não ha nenhuma igual. Quem é, ó luz formosa, Ó minha bella irmã! Quem é que faz a rosa Abrir pela manhã?... Eu amo-te e (as trevas Não teem esplendor!) Tu só é que me levas O tempo e o amor. Mas eu estimo o raio E gósto do trovão, Por vêr que quando cáio É que me elevo então. Por vêr que em tendo medo Mais se me aviva a fé; E a fé, não ha rochedo Firme como ella é. Por cima da desgraça Ou seja do que fôr, Ella, não olha, passa De fito no Senhor! A essa luz divina, Ó luz! é que tu és Tão pura e crystallina Como o Senhor te fez. Por isso a noite escura, Ah! se eu a preferi Á tua luz tão pura, É por amor de ti! Messines. * * * * * RESPOSTA A A. DO QUENTAL Tal é a confiança que te inspira Estes reis, estes povos, esta gente, Que é para o céo que appella e se retira Tua alma já de triste e descontente. Mas Deus então seria ou impotente Ou seria um Deus barbaro: mentira! Não póde suspirar eternamente Quem ha já tantos seculos suspira. Vai ganhando terreno a luz brilhante, Luz toda liberdade e toda amor Que ha-de salvar o mundo agonisante. A idéa, esse Verbo creador Ha-de fazer que um dia e não distante Só o nome de imperio inspire horror. Messines. * * * * * Meu casto lirio, Terno delirio, Gloria e martyrio Do meu amor! Amo-te como A haste o gomo, O labio o pomo E o olho a flôr. Se ao meu ouvido Sôa um rugido Do teu vestido, Que ouço roçar; Que som me vibra Não sei que fibra Que me equilibra A mim no ar! E que harpa santa É que me encanta E enche de tanta Consolação, Quando uma falla Terna se exhala D'onde se embala Teu coração! Quando te vejo D'um simples beijo Córar de pejo, Mudar de côr, Que susto é esse Que me parece Te empallidece, Rosa d'amor! Quando no leito, Teu niveo peito Sonho que estreito E aperto ao meu; Vendo tão perto O céo aberto, Porque desperto... Anjo do céo! Não fujas, rosa! Não fujas, goza Manhã mimosa, Manhã d'amor; De folha em folha A flôr se esfolha Bem cedo, e olha Que és como a flôr! Coimbra. * * * * * VENTURA O sol na marcha luminosa vôa Lançando á terra magestoso olhar; Passa cantando quem o ar povôa E a praia abraça venturoso o mar. No bosque o vento dôce canto entôa, Ouvem-se em côro as multidões cantar; Que a um só triste o coração lhe dôa, Que eu seja o unico a soffrer, chorar... Por ti, saudade... de quem vai tão perto E a quem dos olhos e das mãos perdi N'este tão ermo lugubre deserto! Por ti, ventura... que uma vez senti; Por ti, que ás vezes a meu peito aperto E... o peito aperto sem te vêr a ti! Evora. * * * * * Arida palma Tem seu licôr, Tem como a alma Tem seu amor; Tem como a hera Tem seu abril, Tem como a fera Tem seu covil. Tem toda a planta Que o sol queimou Lagrima santa Que a orvalhou, E o passarinho Que hontem nasceu Lá tem seu ninho Que a mãi lhe deu. Só eu na magua Do meu penar Sou como a agua Que anda no mar, Sou como a onda Que á busca vem D'onde se esconda, E onde, não tem! Folha revolta Que anda no chão, Lagrima solta Do coração; Corpo sem vida, Haste sem flôr, Folha cahida Do meu amor. Coimbra. * * * * * A UNS OLHOS AZUES Cahe a folha da rosa pudibunda, Cahe a rosa da face virginal, Cahe das nuvens a aguia moribunda, Cahe o sol na montanha occidental. Cahe a onda na praia, cahe do somno O poeta na luz; e cahe das mãos Dos despostas o sceptro, elles do throno, Como a seus pés cahiram seus irmãos! Cahe dos labios o riso; cahe dos olhos A lagrima tambem, que d'alma sahe; Cahe a rocha no mar, cahe nos abrolhos A flôr de liz; de louro a folha cahe. Cahe do céo a centelha incendiaria, A nuvem cahe se um sopro Deus lhe dá, Cahe ante o dia a noite solitaria Como o falso Dagon ante Jehovah. Cahe tudo, flôr! cahe tudo; eu só não cáio: Mais do que um rei, que o sol, igual a Deus, Cahir, mulher! só posso á luz d'um raio Se elle cahir do céo dos olhos teus! Luso. * * * * * HERESTA Que magua ou que receio Dos olhos te desata Aljofares de prata No jaspe do teu seio? Bem intima ser deve A pena que te opprime, Flôr tenra como o vime, Flôr pura como a neve! --Compunge-te isso, dóe-te Vêr esmaltando o calix Da erma flôr dos valles O balsamo da noite? Se aos olhos nos affluem As lagrimas, parece Que a dôr nos adormece, E as maguas diminuem. --Heresta! pois inclina Na minha a tua face E deixa me repasse Teu balsamo, bonina! Abraça-me, divide Commigo esse consolo, Enlaça-te ao meu collo Como ao olmeiro a vide! Ás vezes tambem quando Os olhos se me estendem Ás luzes, que se accendem No templo venerando; Tão intima saudade, Tão intimo desejo, D'um mundo, que não vejo, Me inspira a immensidade... Que o pranto se agglomera Na palpebra, onde morre; Sim, gela-se, não corre, Tal é a dôr que o gera! --É Deus que a si te aspira, É Deus que ao céo te chama; Que em tudo amor derrama, A tudo amor inspira! Canta-o, o justo, o santo! E a flôr que o campo adorne Thuribulo se torne Mal te ouça o dôce canto. --Inspira-o pois, inspira, Virgem de intacto pejo! Seja um teu riso o harpejo E um teu cabello a lyra! ---------- O sol já da montanha Te disse adeus! adeus! E a cupula dos céos Ficou pallida e estranha. E aquella, que a bondade De Deus em si reflecte, Em quanto ao sol compete Mostrar-lhe a magestade, Á luz extrema d'hoje Ergueu livida a face Com medo que avistasse Quem busca, e de quem foge. Fluxo e refluxo eterno D'alma contradictoria, Que após continua gloria, Anda em continuo inferno. Poeta! é copia tua, Supplicio igual te inquieta. Mas que alma de poeta Teu seio arqueia, oh lua? Amor, amor como este, Visão timida e casta Em giro eterno arrasta A lampada celeste. Como esse que a deshoras A ti te ergue a cabeça E aos ermos te arremessa Em busca do que adoras. Mas, ah! pallido globo! É pio d'ave nocturna, Echo em alguma furna Do uivo d'algum lobo? Ouço uma voz... escuta: É ella a voz que se ouve? Ou monge que inda louve A Deus, n'alguma gruta! Quem lá em baixo á escarpa D'um ingreme penedo No tremulo arvoredo Entorna os ais d'uma harpa? É ella a minha Heresta, A minha branca ermida Do ermo d'esta vida, Mais erma que a floresta? Tu, lua, que no val D'Aialon paraste, Já viste em sua haste Suspenso lirio igual? Não é, não é mais bella A rosa entre os abrolhos, Nem ha como os seus olhos No céo nenhuma estrella! É á luz d'uma alvorada, Apenas desabrocha, Nos angulos da rocha Vêl-a despedaçada! Vós, lobos! ide em bando, Trepai pelo rochedo, Uivai, mettei-lhe medo, Levai-a recuando! Que faz quem se aproxima D'um precipicio, diz-m'o? Que buscas tu no abysmo Se o céo é lá em cima? Não tarda muito, creio, Que acabe esta ancia nossa, E Deus unir-nos possa No seu eterno seio. É lá que a alma falla, Lá que o amor se mede, Que em brilho o sol excede, E em gloria a Deus iguala! Na nuvem do futuro Teus vagos olhos prega! Depois de noite negra Vem sempre um céo mais puro. ---------- E agora, se o desejo Te satisfiz, em premio D'um canto d'alma gemeo, Um gemeo e dôce beijo! Coimbra. * * * * * FRAGMENTO .......................................... Deixal-o: os olhos fecho á luz e quero... Quero-te, oh sonho, se és doirado e lindo: Mais que a teus fachos, pedagogo austero! Que me condemnas em chorando e rindo. Sempre olhos fundos, sempre esse ar severo... Razão! não te amo; mas a ti, bemvindo, Tu que os conselhos nunca, amor! lhe tomas; Dás luz á lua, dás á rosa aromas. Oh! ha tres vistas com que as coisas vemos; Ha tres razões que as coisas determinam; Uma a dos olhos; outra a que escondemos N'isso ante que os alemos se inclinam; Outra a que dentro no coração temos, Que os limites do espaço só terminam: Coube a primeira em sorte á borboleta; A outra ao homem; a terceira ao poeta. Mas será só poeta quem faz versos? Não é a flôr poeta que o sol canta? Não cabe aos ais tão intimos, dispersos Do cantor triste nome e gloria tanta? Esses aereos tão mimosos berços, Que, excepto o homem, o furor quebranta A quanto é fero e sanguinario, acaso Cada um d'elles não é um parnaso? Mais poesia em pobre margarida, Que aos pés se pisa, enthesoirada vejo, Que em muita madreperola polida Que as cinzas guarda de finado harpejo. Dize-me, pomba! que no ar sustida Vens como a nuvem coroar d'um beijo Quem teus desvelos maternaes comparte: Camões excede-te em engenho e arte? Vaidade humana! Do que é simples, claro, Fazem mysterio; dão-lhe um nome e basta: Como esse eunucho sacerdocio avaro Que da verdade as multidões afasta... Mas a verdade não é pedra d'ara Nem arca-santa que só certa casta Tem privilegio de levar ao hombro Ou vêr de perto, sem morrer d'assombro. Padre, ministro do Crucificado É bom ferreiro afeiçoando o ferro Com que ha-de prestes ir rompendo o arado Os campos d'este secular desterro. Melhor explicam um lugar sagrado Bigorna e malho, que explica o berro De bonzo inutil; que asperos abrolhos Não viram nunca seus inchados olhos. Apostolo é o pai que se afadiga Só para que descance o filho amado; Apostolo é a rocha em que se abriga Ave agoureira e pobre desgraçado; Apostolo é a lagrima que amiga Cahe pela face em peito amargurado; E esse monstro do céo que solitario Correu o mundo á busca do Calvario. E assim vós outros, falsos sacerdotes! Que a mesma crença sustentar devêreis, Poetas vos chamaes se em ôcos motes Sabeis vasar combinações estereis? Monges! tendes o habito; se os dotes, Os doze dons do Espirito tivereis, Crêreis que é mais poeta o dôce favo Que a abelha fabríca em mato bravo. Fechei a minha bocca largo espaço Para vêr e pasmar; eu não podia Tirar os olhos do tributo escaço Que paga o albergue quando acaba o dia. Pelo filhinho em maternal regaço Como ave em ninho a balançar, medía, Não essa Iliada a compasso austero, Mas a de Christo, a do celeste Homero. Lia esse livro que anda encadernado Em pelle humana e embrulhado em pranto, Mas para bençãos, para amor dictado E quanto ha puro, quanto ha bello e santo: Livro que o impio soletrou tocado, Se o impio os olhos pôde erguer a tanto; Mas que a moirama só conserva vivo Porque não morre o immortal captivo. Não morre: eterno como a fonte d'onde Dimana a luz, a vida, amor e tudo, Que amostra a terra, amostra o mar, e esconde O céo, o espaço, o infinito mudo... O mundo mudo! para quem? responde, Valente martyr! que o pesado escudo, Com que a verdade os olhos encobria, Morreste mas quebraste á luz do dia. «Existe um pai commum, que a todos ama E d'elles só juiz a si reserva Punil-os de seu mal; o sol derrama Por cedro erguido e enterrada herva; Desarma o laço que a perfidia trama, Ou n'elle a prende e faz cahir; enerva Braço que se ergue contra irmão; fecunda Semente que não cahe de mão immunda. «Diante d'elle as obras apparecem Taes como as gera o intimo do peito: Basta o amor do bem, se as mãos fallecem; Sem esse amor é nada o grande feito. Embora os homens de soltar se esquecem Quem chora escravo; porque, em seu conceito Deixe chorar quem purpuras arrasta, Cante que é livre na verdade, e basta.» Ella o resto fará; porque a seu braço Reis não resistem, não resistem povos: Um raio a nuvem parte e deixa o espaço Coalhado d'astros que parecem novos: Põe ao sol, que o fecunde, o simples traço, Como a grande avestruz os grandes ovos; E quem depois no mundo a luz lhe apaga? Ninguem apaga a luz que o mundo alaga. Sacerdocio embusteiro as mãos lhe prega Em tronco immovel que seus labios gele; Á justiça profana o justo entrega (Sua irmã gemea que a verdade expelle:) Já das almas senhor o rosto alegra, Já morto o canta, sepultado e elle Só o consome o incendio que já lavra De bocca em bocca, o incendio da palavra. Nenhum de nós o viu andar prégando, Nenhum seu olhar vago lhe notámos, Nunca o vimos no ermo a Deus orando, Nunca a mão estendida lhe apertámos; E por todos seu nome vai passando, Todos, os seus preceitos, decorámos... E que vá vêr-lhe a campa ao Oriente Quem os olhos da carne tem sómente. Que é um tumulo acaso, esse tributo Pago pela materia á vil materia? Quem vai na campa alliviar o luto Se a vista alonga á amplidão aerea? Quem a copia de Deus rebaixa a bruto, E a mais que bruto a immortal, etherea, Celeste pomba, que em seu vôo a vida Em factos deixa ás almas esculpida? Não me embala inda Homero nos seus braços E me pinta nas mãos a natureza? Não lhe ouço eu inda a voz...como ouço a espaços A voz da grande Fama portugueza... Quando me apraz olhar para os pedaços D'este grande gigante que a fraqueza Expoz aos coices...leão moribundo... O rei antigamente d'este mundo? Eu não sou dos que a patria sua adoram Como adora o seu deus o fiel crente. Vejo que todos n'uma patria moram E sobre todos vejo um céo sómente: Mas ame cada qual; que se outros choram Nas mãos dos tigres que só comem gente, Tambem meus olhos choram seu tormento D'onde quer que seus ais me traga o vento. Deixai ir em seu transito divino Desde a Cruz do Calvario na Judêa, Té á ponta da espada d'aço fino Desembainhada em Italia, o tempo, a idêa. Deixai andar a vêr o peregrino Onde a ventura abunda, onde escassêa Para vos dar, no oiro (Fé e Esperança!) Rei e pastor nas conchas da balança. Ha-de vir esse dia; e se a figueira Em abrolhando perto vem o estio, Não longe está: a cobra carniceira De mil roscas e lugubre assobio Que terra come, e come a terra inteira, Se á terra inteira se enrolar, despiu A pelle enorme com bastantes dôres Esfolada por tres imperadores... Eu não sei qual mais chore; se essa sêde De sangue insaciavel dos tyrannos, Ou se é a escuridão vossa que eu hei-de Antes chorar, oh miseros humanos! Que solimão vos deram, loucos! vêde: Não vale a gloria que vos faz ufanos Um só pingo de sangue, um só, vertido, Um gemido de mãi, um só gemido! É do sangue e das mães que eu fallo; e certo, Que ha na vida mais santo? O sangue é vida; E as mães fonte da vida: eu nunca esperto Esta lampada d'alma, suspendida Na abobada eterna e que tão perto Parece ter a origem............ ................senão quando Vejo essa cara imagem suspirando. Eu amo as mães, seu nome é terno e dôce; Sim, amo as mães: nossa alma d'ellas nasce: Quem n'um collo de mãi cahiu, achou-se D'um pulo ao pé de Deus: a alma pasce Lirios celestes vendo-as; e seccou-se, ........................................ Do casto e candido a sagrada fonte, Se ella no tumulo encostou a fronte. Essa é a virgem-mãi, voz suavissima D'esse cantico eterno--o Evangelho; A Virgem... Mãi... de Deus! virgem purissima, Cheia de graça e de justiça espelho. Oh poesia, poesia altissima Como o fecho do empyreo! eu me ajoelho E beijo a tua base, harpa celeste! O coração, a corda que nos déste. Em que labios se bebem mais delicias, Em que face de virgem se desatam Rosas mais puras d'intimas primicias, Que nas que por dar vida a nós se matam? Sempre a bem nosso, a nosso amor propicias Na menina dos olhos nos retratam; E nunca premio vil em paga pedem De quanto, tanto d'alma, nos concedem. Na montanha da Fé, mulher formosa Se ante mim a meus pés desenrolasse, Como o demonio, a vastidão pasmosa Que elle dava a Jesus se o adorasse; E me pedisse em premio uma só coisa --Ás mãos de minha mãi furtar a face; Eu lançava-lhe o cuspo, essa tesoira Que em mil bocados faz a vacca-loira. Vêde-a ao berço, sofrega de vida, Que a sua é pouca para a dar ao filho; Ella em cama de espinhos, mal vestida; Elle enfaxado, em berço de tomilho; Ella em contínua, azafamada lida, Elle vendo se apanha á luz o brilho... Já descobrindo em tão tenrinha idade Que toda a sua sêde é de verdade. E esses lobos que em duas patas andam Para ter sempre em guarda as outras duas; Que a monte sahem só, e só debandam Como os ladrões, á noite, pelas ruas; A empecer que os animos se expandam, Que a luz se espalhe, e que as imagens tuas, Bom Deus! de imagens passem: e que admira... Sem o sopro que ao barro a vida inspira! Já se iam vendo os campos relvejando Cá da banda do sol n'este horisonte Por onde já n'um mar se andou nadando E onde apenas se encontra secca fonte; E eil-os já os hypocritas minando, Cortando ao povo hebreu na marcha a ponte Só para que o manná que o céo lhe chove No deserto dos reis jámais nem prove. Retalhou-lhes o labio omnipotente O habito comprido, a manga larga, Olhar submisso mas lugar na frente; E nem despido o monstro a presa larga. «São sepulchros caiados, vêde, oh gente! Por dentro podridão:» em voz amarga, Em voz de grande horror, de grande abalo, Christo clamou d'aquelles de quem fallo. «Dizimam-te o coentro e a arruda, Mas sua consciencia é generosa. Chamam-se mestres... de sciencia muda, A sciencia da cobra venenosa: Olhai, não espia a fera, espreita, estuda Toda a volta do dia, mais manhosa, Que essa raça de viboras, que espalha Veneno em todo o mundo, que coalha.» Irmãs da Caridade! A Caridade Tem só duas irmãs--a Fé e a Esperança: Não traja as côres só d'uma irmandade, Traja as côres do Arco-da-alliança: Leva sósinha o pão da piedade, Tira da roda essa infeliz criança... Roda da vida, que anda de tal sorte Que, em se lhe dando, é já contar com a morte. Bemdita sejas tu, victima triste De um peito amante e d'um amante ingrato! Que nunca á mesma loba lançar viste Inda mamando o cachorrinho ao mato; Bemdita sejas tu, que o que pariste, Teu fructo, imagem tua e teu retrato Conservas como espelho onde te vejas; Bemdita sejas tu, bemdita sejas. Pára suspensa a pomba no seu vôo Ao vêr-te contemplando-o ajoelhada; E dizendo-te, a pomba: eu te abençôo Da parte do pai nosso, irmã amada! Abriste o seio ao dia e fecundou-o Aquella luz que o mundo fez de nada, E deu ao campo a flôr, á flôr semente Com que a mãi os filhinhos seus sustente. Bemdita sejas tu. Quando se esconde Debaixo da tua aza o que criaste, Abraça e beija os anjos Deus lá onde A jarra está da flôr de que és a haste; E um dia que não tenhas pão avonde Ou do céo te não chova agua que baste, Lança-lhe á luz do dia a mão direita, Mostra-lh'o; Deus os filhos não engeita. Pai não tinha o filhinho de Maria E ella o bercinho lhe arma de mil flôres, Deixando entrar em casa a luz do dia Que em perfume as derreta em seus amores; E inda abrindo os olhinhos mal lhe via, Já os pinceis preparam os pintores; Que o pai d'esse menino... Oh maravilha! Os que não teem pai Deus os perfilha. Deixa passar de largo a desposada... De cujo filho o pai quem é, Deus sabe! Deixa-a roçar-te os fatos enfadada Se comtigo na praça a par não cabe: Talvez um dia a casa levantada Sobre a areia solta ao chão desabe E em ruinas se encontre este letreiro: «Não era o pai dos teus mais verdadeiro.» Quem é que nasce aos pares como a rola, Ou como a pomba morre em viuvando, Que pela vêr sósinha em lodo atola Fresca vide que está do chão lançando? Acaso é só dourada altiva estola Que liga os corpos em as mãos ligando, Confunde os corações, e faz em summa Que a Deus se elevem duas almas n'uma? Amor é a palavra, o brado eterno Solto por Deus ao vêr já feito o mundo, Que fez tremer os carceres do inferno E o sol ficou da côr d'um moribundo: A primavera, estio, outono, inverno, Terra, céo, alma pura, bicho immundo, Tudo ahi cabe á larga de tal modo Que n'essa concha Deus se fecha todo. Amor enrola a nuvem na montanha E espalma a onda em praia que não sente, Ata ao raio de sol o fio d'aranha E humilha ao conductor o raio ardente. Quanto na rede immensa a vista apanha. Tudo que jaz e cresce e vive e sente, De Deus brotou n'um jorro de bondade E póde amar-se em espirito e verdade. Amo á aurora a luz doirada e clara, E ao crepusculo as nuvens da tristeza, A solida montanha, a nuvem rara Por invisivel fio aos astros presa; Amo a ancia feroz, a sêde avara Com que a loba parida engole a presa, E os crystallinos ais d'ave innocente Que comprimenta o sol ingenuamente! Amo o sopro que parte, esmaga, estala Esses corvos que aos bandos vem das ondas N'essas noites que o impio até se cala Receando, trovão! que lhe respondas... E amo o bafo subtil que a flôr embala Pedindo-te, botão, que dentro o escondas, E as primicias lhe dês que leve áquelle Que te fez a ti flôr e vento a elle. Tu só, que horror! a ti oh não te amo! Cheiras-me a sangue tu; teus olhos baços Olham, não vêem; tu tens bocca, chamo, Não me respondes; tens como eu dois braços, E não me abraças; brado afflicto, clamo, Tens duas pernas, e não dás dois passos: Ris, mas teu riso é d'enrilhados dentes; Mettes-me medo; tu, cadaver! mentes. Ninguem (prohibe-o Deus) o braço córte Que lhe roubou o espirito divino; Deus a Cain apaga sul e norte E condemna a viver o assassino: Mas tu, mentira! symbolo da morte... Hypocrisia! teu sorrir felino Te deixe arreganhada a bocca aberta, Gele-te a morte a mão que a minha aperta. .......................................... Evora. * * * * * Se ao enlaçal-a no peito Me cahe desfeita uma flôr, Lembras-me, sonho desfeito! Sonho d'amor! Se a borboleta do calix D'um lirio aos ares se ergueu, Lembras-me, estrella dos valles! Lirio do céo! Se inda um affecto em mim vive Entre os que mortos possuo, Lembras-me, sonho que eu tive! Lembras-me tu! Coimbra. * * * * * Nunca me ha-de esquecer (ingrata! escuta) Não tendo eu mais talvez que os meus dez annos Esses olhos crueis, esses tyrannos Commigo em porfiada aberta lucta. Se eu fôra voraz lobo ou fera bruta D'entranhas más, instinctos deshumanos, Talvez o fructo então de teus enganos O não colhesses tu de face enxuta. Mas eu perdôo-te o mal que me has causado; A culpa não é tua e só devia Vingar-me em quem tão bella te ha formado. E hei-de vingar-me, crê; mas isso um dia Depois d'um beijo teu me pôr em estado De disputar a Jove a primazia. Evora. * * * * * DINHEIRO O dinheiro é tão bonito, Tão bonito, o maganão! Tem tanta graça o maldito, Tem tanto chiste o ladrão! O fallar, falla d'um modo... Todo elle, aquelle todo... E ellas acham-no tão guapo... Velhinha ou moça que veja, Por mais esquiva que seja, _Tlim!_ Papo. E a cegueira da justiça Como elle a tira n'um ai! E sem pegar n'uma pinça; É só dizer-lhe: ahi vai... Operação melindrosa Que não é lá qualquer coisa; Catarata! tome conta: Pois não faz mais do que isto, Diz-me um juiz que o tem visto: _Tlim!_ Prompta. N'essas especies de exames Que a gente faz em rapaz, São milagres aos enxames O que aquelle diabo faz. Sem saber nem patavina De grammatica latina, Quer-se a gente d'alli fóra? Vai elle com taes fallinhas, Taes gaifonas, taes coisinhas... _Tlim!_ Ora... Aquella physionomia E labia que o diabo tem! Mas n'uma secretaria Ahi é que é vêl-o bem! Quando elle, de grande gala, Entra o ministro na sala, Aproveita a occasião: Conhece este amigo antigo? --Oh meu tão antigo amigo! (_Tlim!_) Pois não! Coimbra. * * * * * DUVIDA Amas-me a mim! Perdôa; É impossivel! Não, Não ha quem se condôa Da minha solidão. Como podia eu, triste, Ah! inspirar-te amor, Um dia que me viste, Se é que me viste... flôr! Tu, bella, fresca e linda Como a aurora, ou mais Do que a aurora ainda, Mal ouves os meus ais! Mal ouves porque as aves Só soltam de manhã Seus canticos suaves; E tu és sua irmã! De noite apenas trina O triste rouxinol: Toda a mais ave inclina O collo ao pôr do sol. Porquê? porque é ditosa! Porquê? porque é feliz! E a que sorri a rosa? Ao mesmo a que sorris! Á luz doirada e pura Do astro creador. Á noite, não, que é escura, Causa-lhe a ella horror. Ora uma nuvem negra, Uma pesada cruz, Uma alma que se alegra Só quando vê a luz De que elle, o sol, inunda O mar, quando se põe! Imagem moribunda D'um coração... que foi! Uma alma semelhante Não póde captivar Um rosto tão galante, Um tão galante olhar! E eu vi os caracteres Que a tua mão traçou: Mas vós... ah! vós, mulheres, Quem já vos decifrou! Mal te sustinha o pulso A delicada mão! Sentia-te convulso Bater o coração! Via-te arfar o seio... Corar... mudar de côr... E embora, ah! não, não creio... Tu não me tens amor! Portimão. * * * * * CATURRAS Ah! compadre, a gente foge, Desabelha com calor; Aqui faz fresco na loge, É onde se está melhor; Mas que calor que fez hoje! --Pois, olhe, assim eu me désse De inverno quando faz frio, Como agora que elle aquece. Tome dois banhos no rio, Logo vê como arrefece. --Compadre, nunca me traga Taes coisas á collação; Lembra-me a maldita draga, Compadre do coração! Não me falle n'essa praga! --Tenho-lhe a mesma amizade Que o meu compadre lhe tem, Ás vezes dá-me vontade Até de a tragar tambem... Digo-lhe isto com verdade. --Ha-de isto chegar a pontos Que quem viver ha-de vêr! Já lá vão setenta contos, E a draga a apodrecer, E trabalhos nenhuns promptos. --Setenta, diz o compadre? Dão-lhe elles esse verniz... Lá como a sua comadre... Mas eu cá o que ella diz É como o que diz o padre... --Pois inda isso continúa? --Eu sei lá, compadre, eu sei! Ora canta, ora se amua... Eu é que já me lembrei De a pôr um dia na rua! --Compadre, tenha miolo, Isso não se faz assim; Eu não me tenho por tolo, E ponha os olhos em mim... Sirva-lhe isso de consolo. --Pois bem sei que é ninharia, Mas o compadre o que quer? Estimo a minha Maria, E isto de homem com mulher... Mas vamos á vacca fria: Com que a draga...--É empregada, Coisa que nunca se viu, Sendo uma peça aceada, A tirar lama do rio! Parece isto caçoada... --E caçoada indecente Porque outra coisa não é. Mais economicamente Quando vasasse a maré A tirava mesmo a gente. --E depois aquillo é lodo Que nunca póde prestar. Veja aterrar o caes todo Quando não ha-de importar... É gastar dinheiro a rodo. --Haja decima e derrama; Por causa do quê? do caes, Da draga ou como se chama, E outras coisinhas que taes Que tudo a final é lama. Pois sendo tudo bem feito Como á antiga, vá lá! Mas olhe, o caes não tem geito; De tudo quanto alli ha, A meu gosto, o parapeito. --Sim, senhor, obra segura, Obra como deve ser; Feio e forte; é o que dura: Foi sempre o que ouvi dizer A quem está na sepultura... --Mas era tudo escusado; N'esta, compadre, é que estou; E isto dá-me algum cuidado, Que o que meu pai me deixou Não foi nada mal ganhado. --Pois e, se quer que lhe conte, Já se ahi falla outra vez Em mandar fazer a ponte: Cuida esta gente talvez Que temos alguma fonte... --E havendo então uma barca... Como a Arca de Noé! Lá porque a gente se enxarca E não póde andar a pé Quando embarca e desembarca. --Escarranchem-se ao cachaço Dos marujos: pois então? Cá em taes obras nem passo Que pernas minhas darão; É gosto que lhes não faço. --Nada! havemos de ir agora Vêr ambos o que lá vai; Que a nós aquillo por ora Bem sei que nos não distrahe; Mas temos pouca demora. --Pois vamos, compadre, vamos. Sentamo-nos nos poiaes, Alli mesmo conversamos Ambos sósinhos no caes, E depois logo voltamos. Portimão. * * * * * Cosi trapassa, al trapassar d'un giorno, Della vita mortale il fiore e 'l verde, Nè, perchè faccia indietro april ritorno Si rinfiora ella mai, nè si rinverde. TASSO. Foi-se-me pouco a pouco amortecendo A luz que n'esta vida me guiava, Olhos fitos na qual até contava Ir os degraus do tumulo descendo. Em se ella anuveando, em a não vendo, Já se me a luz de tudo anuveava; Despontava ella apenas, despontava Logo em minha alma a luz que ia perdendo. Alma gemea da minha, e ingenua e pura Como os anjos do céo (se o não sonharam...) Quiz mostrar-me que, o bem, bem pouco dura. Não sei se me voou, se m'a levaram, Nem saiba eu nunca a minha desventura Contar aos que inda em vida não choraram. Ah! quando no seu collo reclinado, --Collo mais puro e candido que arminho, Como abelha na flôr do rosmaninho Osculava seu labio perfumado; Quando á luz dos seus olhos... (que era vêl-os, E enfeitiçar-se a alma em graça tanta!) Lia na sua bocca a Biblia Santa Escripta em letra côr dos seus cabellos; Quando a sua mãosinha pondo um dedo Em seus labios de rosa pouco aberta, Como timida pomba sempre álerta, Me impunha ora silencio ora segredo; Quando, como a alveloa, delicada E linda como a flôr que haja mais linda Passava como o cysne, ou como, ainda Antes do sol raiar, nuvem doirada; Quando em balsamo d'alma piedosa Ungia as mãos da supplice indigencia, Como a nuvem nas mãos da Providencia Uma lagrima estilla em flôr sequiosa; Quando a cruz do collar do seu pescoço Estendendo-me os braços, como estende O symbolo d'amor que as almas prende, Me dizia... o que ás mais dizer não oiço; Quando, se negra nuvem me espalhava Por sobre o coração algum desgosto, Conchegando-me ao seu candido rosto, No perfume d'um riso a dissipava; Quando o oiro da trança aos ventos dando E a neve de seu collo e seu vestido --Pomba que do seu par se ia perdido, Já de longe lhe ouvia o peito arfando; Tinha o céo da minha alma as sete côres, Valia-me este mundo um paraiso, Distillava-me a alma um dôce riso, Debaixo de meus pés nasciam flôres. Deus era inda meu pai. E em quanto pude Li o seu nome em tudo quanto existe --No campo em flôr, na praia arida e triste, No céo, no mar, na terra e... na virtude! Virtude! Que é mais que um nome Essa voz, que em ar se esvái, Se um riso que ao labio assome N'uma lagrima nos cái! Que és, virtude, se de luto Nos vestes o coração? És a blasphemia de Bruto --Não és mais que um nome vão. Abre a flôr á luz, que a enleva, Seu calix cheio d'amor, E o sol nasce, passa e leva Comsigo perfume e flôr! Que é d'esses cabellos d'oiro Do mais subido quilate, D'esses labios escarlate, Meu thesoiro! Que é d'esse halito, que ainda O coração me perfuma! Que é do teu collo de espuma, Pomba linda! Que é d'uma flôr da grinalda Dos teus doirados cabellos, D'esses olhos, quero vêl-os, Esmeralda! Que é d'essa alma que me déste! D'um sorriso, um só que fosse, Da tua bocca tão dôce, Flôr celeste! Tua cabeça que é d'ella A tua cabeça d'oiro, Minha pomba! meu thesoiro! Minha estrella! De dia a estrella d'alva empallidece; E a luz do dia eterno te ha ferido. Em teu languido olhar adormecido Nunca me um dia em vida amanhecesse. Foste a concha da praia. A flôr parece Mais ditosa que tu. Quem te ha partido, Meu calix de crystal, onde hei bebido Os nectares do céo... se um céo houvesse! Fonte pura das lagrimas que choro! Quem tão menina e moça desmanchado Te ha pelas nuvens os cabellos d'oiro! Some-te, vela de baixel quebrado! Some-te, vôa, apaga-te, meteoro! É n'este mundo mais um desgraçado. E as desgraças, podia prevel-as Quem a terra sustenta no ar, Quem sustenta no ar as estrellas, Quem levanta ás estrellas o mar. Deus podia prevêr a desgraça, Deus podia prevêr e não quiz; E não quiz, não... se a nuvem que passa Tambem póde chamar-se infeliz! A vida é o dia d'hoje, A vida é ai que mal sôa, A vida é sombra que foge, A vida é nuvem que vôa; A vida é sonho tão leve Que se desfaz como a neve E como o fumo se esvái: A vida dura um momento, Mais leve que o pensamento, A vida leva-a o vento, A vida é folha que cái! A vida é flôr na corrente, A vida é sôpro suave, A vida é estrella cadente, Vôa mais leve que a ave; Nuvem que o vento nos ares, Onda que o vento nos mares, Uma após outra lançou, A vida--penna cahida Da aza d'ave ferida-- De valle em valle impellida, A vida o vento a levou! Como em sonhos o anjo que me afaga Leva na trança os lirios que lhe puz, E a luz quando se apaga Leva aos olhos a luz; Como os ávidos olhos d'um amante Levam comsigo a luz d'um dôce olhar, E o vento do levante Leva a onda do mar; Como o tenro filhinho quando expira Leva o beijo dos labios maternaes, E á alma que suspira O vento leva os ais; Ou como leva ao collo a mãi seu filho, E as azas leva a pomba que voou, E o sol leva o seu brilho, O vento m'a levou. E tu és piedoso, Senhor! és Deus e pai! E ao filho desditoso Não ouves um só ai! Estrellas déste aos ares, Dás perolas aos mares, Ao campo dás a flôr, Frescura dás ás fontes, O lirio dás aos montes E tiras-m'a, Senhor! Ah! quando n'uma vista o mundo abranjo, Estendo os braços e, palpando o mundo, O céo, a terra e o mar vejo a meus pés; Buscando em vão a imagem do meu anjo, Soletro á froixa luz d'um moribundo Em tudo só--talvez... Talvez é hoje a Biblia, o livro aberto Que eu só ponho ante mim nas rochas, quando Vou pelo mundo vêr se a posso vêr; E onde, como a palmeira do deserto, Apenas vejo aos pés, inquieta, ondeando A sombra do meu sêr. Meu sêr, voou na aza da aguia negra Que, levando-a, só não levou comsigo D'esta alma aquelle amor! E quando a luz do sol o mundo alegra, Chrysalida nocturna, a sós commigo, Abraço a minha dôr! Dôr inutil! Se a flôr, que ao céo envia Seus balsamos, se esfolha, e tu no espaço Achas depois seus atomos subtis; Inda has-de ouvir a voz que ouviste um dia, Como a sua Leonor inda ouve o Tasso!... Dante... a sua Beatriz! --Nunca; responde a folha que o outono, Da haste que a sustinha a mão abrindo, Ao vento confiou: --Nunca; responde a campa onde, do somno, E quem talvez sonhava um sonho lindo, Um dia despertou. --Nunca; responde o ai que o labio vibra; --Nunca; responde a rosa que na face Um dia emmurcheceu: E a onda, que um momento se equilibra Em quanto diz ás mais: deixai que eu passe! E passou e... morreu! Coimbra. * * * * * MÃI E FILHO Primicias do meu amor! Meu filhinho! do meu seio Tenro fructo que á luz veio Como á luz da aurora a flôr! Na tua face, innocente, De teu pai a face beijo, E em teus olhos, filho, vejo Como Deus é providente. Via em lamina doirada O meu rosto todo o dia E a minha alma não se havia De vêr nunca retratada? Quando o pai me unia á face, E em seus braços me apertava, Pomba, ou anjo nos faltava Que ambos juntos abraçasse! Felizmente, Deus que o centro Vê da terra e vê do abysmo, Que bem sabe no que eu scismo, Na minha alma um altar viu dentro: Mas com lampada sem brilho, Sem o deus a que era feito... Bafeja-me um dia o peito, E eis feito o meu gosto, filho! Como em lagrimas se espalma Dôr intima e se esvaece D'alma o resto quem podesse Vasar n'um beijo em tua alma! Mas em ti minha alma habita! Mas teu riso a vida furta... Mas (que importa!) morte curta! Se um teu beijo resuscita! Coimbra. * * * * * Toca a capello, vou vêl-o E vejo de toda a côr, Não doutores de capello, Mas capellos de doutor. Coimbra. * * * * * Amas, pobre animal! e tens tu pena?... Sim, póde na tua alma entrar piedade? Se póde entrar, eu sei! Negar quem ha-de Amor ao tigre, coração á hyena! Tudo no mundo sente: o odio é premio Dos condemnados só, que esconde o inferno. Tudo no mundo sente: a mão do Eterno A tudo deu irmão, deu par, deu gemeo. A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto... Esta fera, que as unhas encolhendo Pelos hombros me trepa e vem, correndo, Beijar-me... Só não vivo! amado existo! Evora. * * * * * NÃO! Tenho-te muito amor, E amas-me muito, creio; Mas, ouve-me, receio Tornar-te desgraçada. O homem, minha amada! Não perde nada, goza; Mas a mulher é rosa... Sim, a mulher é flôr! Ora e, a flôr, vê tu No que ella se resume... Faltando-lhe o perfume, Que é a essencia d'ella, A mais viçosa e bella Vê-a a gente e... basta. Sê sempre, sempre, casta! Terás... quanto possuo! Terás, em quanto a mim Me alumiar teu rosto, Uma alma toda gosto, Enlevo, riso, encanto! Depois, terás meu pranto Nas praias solitarias... Ondas tumultuarias De lagrimas sem fim! Á noite, que o pezar Me arrebatar de casa, Irei na campa rasa Que resguardar teus ossos, Ah! recordando os nossos Tão venturosos dias, Fazer-te as cinzas frias Ainda palpitar! Mil beijos, dôce bem! Darei no pó sagrado, Em que se houver tornado Um corpo tão galante! Com pena, minha amante, De me não ter a morte Cahido a mim em sorte... Cahido a mim tambem! Já exhalando os ais Na lugubre morada Te vejo a sombra amada Sahir da sepultura... A tua imagem pura, Fiel, mas illusoria... Gravada na memoria Em traços tão leaes! Então, se ainda alli Teus vaporosos braços, Poderem dar abraços Como dão hoje em dia, Peço-te, sombra fria! No mais intimo d'elles Que a mim tambem me geles, E fique ao pé de ti! Mas, ai! meu coração! Tu porque assim te affliges, E tremula diriges A vista ao céo piedoso!... O quadro é horroroso, A scena triste e feia, Basta encerrar a idéa D'uma separação... Mas, ouve, existe Deus. Ora e, se Deus existe, Tão horroroso e triste Que pódes temer? Nada! Desfruta descançada O extasi, o enleio Em que eu já saboreio O jubilo dos céos! Deixa-me n'esse olhar Vêr como a lua assoma... Sim, deixa no aroma, Que a tua bocca exhala, Vêr como a rosa falla Quando a aurora a inspira... Vêr como a flôr suspira Por vêr o sol raiar! A morte para amor É exito sublime. A morte para o crime, É que é amarga e feia. A morte não receia O verdadeiro amante; Por ella a cada instante Implora elle o Senhor. É juntos, tu verás, Que nós expiraremos! Sim, juntos, que os extremos Olhares cambiando, Iremos despegando, Do involucro terreno, O espirito sereno Como a eterna paz! Vê, só porque suppuz Chegado esse momento, Já esse olhar mais lento... As vistas mais serenas... Bruxuleando apenas, Em languido desejo, Symphatico lampejo D'uma ineffavel luz! Ha, n'este triste valle De lagrimas, a imagem De dois n'essa passagem Para a eternidade... A nevoa, a anciedade, O jubilo que mata, Dão uma idéa exacta Do transito fatal. Mas essa imagem, flôr! É tão fiel, tão viva Que á sua luz activa Se cresta a flôr mimosa! E nem o homem goza: Se goza é um momento! Depois... o desalento! Depois... o desamor! Portimão. * * * * * NA FOLHA D'UM ROMANCE Moldada ao bem nasci, mas debil planta Verguei de vicio ao sopro pestilente; D'entre o vicio porém minha alma ardente Castos hymnos a Deus saudosa canta. Ah! se um mentido affecto amor levanta N'um pobre coração inexperiente, D'elles a culpa é toda! uma innocente Não consulta a razão, razões supplanta. Cahi, verguei, Senhor! já pervertida Graças, beijos vendi, vendi belleza, Triste commercio de mulher perdida. Oh! mas, Deus do amor! foi só fraqueza: De impias mãos me arrancai, tirai-me a vida, Alcance-me o perdão mortal tristeza! Messines. * * * * * Lagrima celeste, Perola do mar, O que me fizeste Para me encantar! Ah! se tu não fosses Lagrima do céo, Lagrimas tão dôces Não chorára eu. Se nunca te visse Bonina do val, Talvez não sentisse Nunca amor igual. Pomba desmandada, Que é dos filhos teus, Luz da madrugada, Luz dos olhos meus! Meu suspiro eterno, Meu eterno amor, D'um olhar mais terno Que o abrir da flôr, Quando o nectar chora, Que se lhe introduz, Ao romper da aurora, Ao raiar da luz, Por entre a folhagem Onde mal se vê, Como a terna imagem Da que eu adorei. Que esta voz te enleve, Que este adeus lá sôe, Que o Senhor t'o leve, Que Deus te abençôe. Que o Senhor te diga Se te adoro ou não, Minha dôce amiga Do meu coração! Se de ti me esqueço, Se já me esqueci, Ou se mais lhe peço, Do que vêr-te a ti; A ti que amo tanto Como a flôr a luz, Como a ave o canto, E o Cordeiro a cruz, E a campa o cypreste, E a rola o seu par, Lagrima celeste! Perola do mar! Coimbra. * * * * * DESCALÇA! Quem és, que ao vêr-te o coração suspira, E em puro amor desfaz-se! Raio crepuscular do sol que nasce, De lampada que expira! Como os teus pés são lindos! como é dôce A curva do teu peito! Oh! se o meu coração fosse o teu leito, E o teu amado eu fosse! Que preciosas perolas descobre Teu meigo humido labio! E, virgem! como Deus foi justo e sabio Em te fazer tão pobre! Não tens fofo velludo onde se atole Tua angelica imagem; Mas quando é bello o céo, bella a paizagem E quando é bello o sol? Limpo de nuvens, nú, derrete a neve E a aguia até desmaia. Tu não tens mais do que uma pobre saia, E essa, curtinha e leve. Onde o corpo te alteia, a saia avulta; Onde te abaixa, desce... És como a rosa! A rosa nasce e cresce, Não para estar occulta. O que te falta pois? os teus desejos Quaes são? de que precisas? Ah! não ser eu o marmore que pisas... Calçava-te de beijos! Coimbra. * * * * * ADEUS! Adeus tranças côr de oiro, Adeus peito côr de neve! Adeus cofre onde estar deve Escondido o meu thesoiro! Adeus bonina, adeus lirio Do meu exilio d'abrolhos! Adeus oh luz dos meus olhos E meu tão dôce martyrio! Desfeito sonho doirado, Nuvem desfeita de incenso, Em quem dormindo só penso, Em quem só penso acordado! Visão sim mas visão linda! Sonho meu desvanecido! Meu paraiso perdido Que de longe adoro ainda! Nuvem, que ao sopro da aragem Voou nas azas de prata, Mas no lago que a retrata Deixou esculpida a imagem! Rosa d'amor desfolhada Que n'alma deixou o aroma, Como o deixa na redoma Fina essencia evaporada! Adeus sol que me alumia Pelas ondas do oceano D'esta vida, d'este engano, D'este sonho d'um só dia! No mesmo arbusto onde o ninho Teceu a ave innocente Se volta a quadra inclemente Acha abrigo o passarinho: Mas eu n'esta soledade Quando em meus sonhos te estreito, Rosto a rosto, peito a peito, Acordo e acho a saudade! Adeus pois morte! adeus vida! Adeus infortunio e sorte! Adeus estrella do norte! Adeus bussola perdida! Coimbra. * * * * * A VICTORIA COLONNA Não sei que ha de divino, força é crêl-o N'esses teus olhos d'uma luz tão pura Que, ao vêl-os, tive logo por segura Aquella paz que é meu constante anhelo. Filha de Deus, nossa alma aspira a vêl-o; Desprezando caduca formosura, Ella, em seu giro eterno, só procura A fórma, o typo universal do bello. Não póde amar, não deve, uma alma casta Fugaz belleza, graça transitoria, Coisa que o tempo leva, o tempo gasta. Nem tambem alma digna de memoria Póde amar o prazer, que o bruto arrasta, Em vez do puro amor--sombra da gloria. MIGUEL-ANGELO. Coimbra. * * * * * N'UM CONVENTO Como a agua em funda gruta Gotta a gotta filtra e cái, Sem saber quem isso escuta O que lá por dentro vai: Como ao longe incerta e baça N'uma igreja alveja a luz, Que da lampada esvoaça E a vidraça reproduz: Mal te vi, moira encantada! Mas á luz dos olhos teus Murcha a lampada sagrada D'um altar do nosso Deus. Mal te ouvi, mas as suaves Melodias, que te ouvi, São mais dôces que as das aves Da aldêa onde nasci! Quem teve, bella captiva, Coração de te deixar Aqui enterrada viva, Sem amor, sem luz, sem ar! Era cego e surdo, juro, O miseravel algoz Que não viu olhar tão puro, Não ouviu tão pura voz! Eu não tendo a faculdade D'arrazar esta prisão, Sacrifico a liberdade Por tão dôce escravidão!... Coimbra. * * * * * SONHO Ha muitos sonhos de imaginação, De mera phantasia: Outros, que são a voz da prophecia, A voz da intuição, A voz do coração. Pões fé em sonhos taes, Maria?... Pões? E fazes bem, que ás vezes Sonha a gente venturas e revezes, Que se tornam depois Bem certos! Ouve pois: Sonhei que era n'um valle. Anoiteceu. Então duas estrellas. (Tão lucidas, tão limpidas, tão bellas!) Vieram lá do céo Alumiar-me. E eu... Não sabia e pergunto: o que buscaes, Alampadas celestes! Vós, cá por este mundo... o que perdestes? Na terra não achaes Senão prantos e ais! Respondem-me as estrellas (como a quem As tivesse captivas, Tão tremulas! as bellas fugitivas) --Buscavamos alguem Que nos quizesse bem: É sorte nossa, é nossa condição Dar luz, ser norte e guia; Mas de mais boamente se alumia Na terra um coração Que nos tem affeição.-- --Pois e se vós do céo, lá onde até Se ignora o que são dôres, Vindes á terra procurar amores, Estrellas! se assim é, Tendes-me aqui ao pé: Que em summa a noite da minha alma é tal Que eu pobre viajante Ando... se para traz, se para diante, N'este profundo val, Não sei nem bem mal. Guiai-me pois, estrellas do Senhor! E a jura que vos faço É que na terra não darei um passo Senão só por amor Do vosso resplendor!-- Ellas então sorrindo-se, que eu vi, Tão meigas e suaves! Voaram como duas lindas aves; Indo poisar ahi... N'esse teu rosto... em ti! Lisboa. * * * * * Á VISTA D'UM RETRATO Amo-te, flôr! Se te amo, Deus que o sabe Que o diga a teus irmãos, que o céo povoam, E ebrios de gloria canticos entoam A quem no mar, na terra e céos não cabe. Se te amo, flôr! que o diga o mar--que expelle Quanto é dominio, beija humilde a praia: Se mal que a lua lá das ondas sáia Nas rochas me não vê gemer com elle. Amo-te, flôr! se te amo, o sol que o diga! Quanto lá da montanha aos céos se eleva, Se entre os vermes do pó que o vento leva, Me banha a mim tambem na luz amiga. Se te amo, flôr? Sem ti, que noite escura, Meu céo, meu campo em flôr, meu dia e tudo! Diga-te a noite minha se te illudo, Se em vida já sem ti, sonhei ventura! O anjo que a berço humilde e escasso Do céo me veio alumiar piedoso, E em lagrimas e riso, pranto e gozo, Desde então me acompanha passo a passo; És tu! Amo-te e muito! O que fluctua Na fornalha que o sopro eterno accende, Não beija a mão do anjo que o suspende Com mais amor que eu beijo a sombra tua! Coimbra. * * * * * A LUA Esse olhar silencioso Em que lingua se traduz? Falla-me, oh astro saudoso, Luz do céo, pallida luz! Que aereas visões me acordas, Que imagem, lua, recordas N'essa prateada côr? Que ha em ti, que a dôr mitiga, Que ha em ti, lampada amiga, De meigo e consolador? Escuta, pallida lua, Dá-me um sorriso dos teus, Dá-me uma lagrima tua, Se és a pupilla de Deus! Vê que outros mimos não tenho, Que em tua face desenho A face do meu amor: Uma só lagrima! fria, Que ella me cáia... diria Que uma lagrima cahia Do céo ao menos na dôr! Coimbra. * * * * * JOVEN CAPTIVA Respeita a foice a espiga verde ainda; Sem medo da vindima, o estio inteiro, Bebe o pampano as lagrimas da aurora: E eu verde como a espiga, tenra e linda Como o pampano, hei-de morrer? não quero: Quero, mas não por ora! Talvez que a outrem, morte, grata fosses. Espero! Embora em lagrimas me lave, Varre-me o norte a mim a face? inclino-a. Se ha dias tristes, ai! ha-os tão dôces... Sem amargo, que mel, por mais suave Que mar, em paz continua? Benefica illusão meu seio habita. Sepulte-me este carcere inhumano; A aza nivea da fé não se agrilhôa. Escapa ao laço da prisão maldita, Mais viva e alegre, a esse aereo oceano, A alvéloa canta e vôa. Hei-de morrer? porque? se não diviso Em minha alma um remorso; durma ou vele, Se eu velo e durmo em paz, na paz do justo! Se em cada rosto a luz me abre um sorriso; Aqui mesmo, onde a mágoa o riso expelle; E a luz assoma a custo! O fim do meu destino é lá tão longe! Quantos passei dos alemos que adornam Esta bella viagem? Assentada Ao banquete da vida apenas hoje, A taça ainda cheia as mãos entornam, Dos labios illibada. Estou na primavera, oh segadores! E as mais quadras do anno havia agora De não acompanhar o sol? havia? Debruçada em meu pé, gloria das flôres, Eu não vi mais do que raiar a aurora; Quero acabar meu dia. Espera um pouco, oh morte! nada perdes. Antes consola os que o remorso, o medo, O desalento pallido devora! Guarda-me ainda o campo grutas verdes! As musas, cantos! e o amor... Segredo! Não morro, não, por ora! Assim, encarcerada, o rosto lindo E a vista alçando a regiões ignotas, Minha musa entoou na fé mais viva: E eu, as languidas mágoas sacudindo, Moldei em dôce verso as dôces notas D'essa joven captiva! ANDRÉ-CHÉNIER. Coimbra. * * * * * Mulher! quando nos braços Te escuto uma canção, Não vês em meus abraços Profunda commoção? É que o teu canto á mente Me traz vida melhor... Ah! Cantai continuamente, Cantai, oh meu amor! Quando sorris, assume Teu rosto uma expressão, Que o mais feroz ciume Se desvanece então. Sorriso tal desmente Um coração traidor... Ah! Sorri continuamente, Sorri, oh meu amor! Quando tranquilla e pura, Te estou a vêr dormir, Que vozes se afigura Teu halito exprimir? Contemplo então contente Teu corpo encantador... Ah! Dormi continuamente, Dormi, oh meu amor! _Letra de_ V. HUGO. _Musica de_ GOUNOD. Lisboa. * * * * * UM BEIJO Seria o beijo Que te pedi, Dize, a razão (Outra não vejo) Porque perdi Tanta affeição? Fiz mal, confesso; Mas esse excesso, Se o commetti, Foi por paixão, Sim, por amor De quem?... de ti! Tu pensas, flôr, Que a mulher basta Que seja casta, Unicamente? Não basta tal. Cumpre ser boa, Ser indulgente. Fiz-te algum mal? Pois bem: perdôa! É tão suave Ao coração Mesmo o perdão D'offensa grave! Se o alcançasse, Se o conseguisse, Quizera então Beijar-te a mão, Beijar-te a face... Beijar? que disse! (Que indiscrição...) Perdão! perdão! Lisboa. FRANCISCA DE RIMINI Disse eu então: poeta, vês aquelles, Abraçados, velozes como o vento? Desejava poder fallar com elles. --Chamando-os com enternecimento, Em cá passando mais do nosso lado, São dois amantes, lograrás o intento. Assim que o vento os aproxima, brado: Oh almas d'uma eterna anciedade, Vinde fallar-me, se vos isso é dado. Como um casal de pombas, com saudade Do ninho, vem no ar, d'aza espalmada, Não mais que por impulso da vontade; Rompendo aquella aragem empéstada, Acodem lá do bando onde anda Dido Á supplica tocante e magoada. «Ah mortal generoso e condoído, Que nos visita n'este escuro horrendo, Deixando nós de sangue o chão tingido! «Do Senhor impetráramos podendo, Já que tens dó do nosso mal enorme, O teu descanço eterno em fallecendo. «Queiras ouvir-nos ou fallar, conforme, É só dizer ou perguntar, mais nada; Em quanto o vento, como agora, dorme. «A terra, onde nasci, fica assentada Na praia onde a final o Pó descança, E os que o seguem na marcha arrebatada. «Amor, que em nenhum moço acha esquivança Prendeu este a um corpo... que roubado Foi á minha alma em barbara vingança! «Amor, que obriga amar quem é amado, Poz-me com elle tão condescendente, Que ainda, como vês, me anda abraçado. «Amor nos deu a morte juntamente. Quem nos matou irá para as Caínas.» Disseram elles isto fielmente. Depois d'ouvir as victimas mofinas, Scismando cabisbaixo, em tal postura, Pergunta-me o poeta: em que imaginas? Começo respondendo: oh desventura! Quanta esperança! quanta sympathia A ambos não cavou a sepultura! E voltando-me a quem me referia: Olha Francisca! dó dos teus tormentos Estas lagrimas tristes desafia. Mas na quadra dos vagos sentimentos, Conta-me: como foi que conheceste Os amorosos languidos momentos! «O desgosto maior d'um triste é este, Fallar do tempo que passou, confesso: Que o diga o proprio guia que trouxeste «Mas desejando tu com tanto excesso Conhecer de raiz esta amizade, Entre vozes e lagrimas começo: «Liamos ambos, por curiosidade, Certa historia d'amores, que idearam, Nós sós, um dia, livres de maldade. «Muita vez nossos olhos se espantaram, E descoramos, lendo a historia estranha; Mas dos lances que mais nos abalaram, «Foi quando em summa o terno amante apanha O dôce beijo, por que andava ardendo: Este, que eternamente me acompanha, «Beija-me a bocca a mim, todo tremendo! A culpa foi do livro que se lia! Não se continuou o dia lendo.» Em quanto assim Francisca respondia, Chorava Paulo, a ponto, d'aterrado Me vêr nas convulsões da agonia, E cahir, como um corpo inanimado! DANTE. Lisboa. * * * * * PAIXÃO Suppõe que d'uma praia, rocha ou monte, Com essa vista embaciada e turva Que dá aos olhos entranhavel dôr; Tinhas podido vêr transpôr a curva, Pouco a pouco, do liquido horisonte, A saudosa barca, que levasse Aquelle, a quem primeiro uniste a face E o teu primeiro amor! Depois, que toda mágoa e saudade, Da mesma rocha ou alcantil deserto, Olhando ávidamente para o mar; Vias na solitaria immensidade, Vagas ficções d'um pensamento incerto, Surgir das ondas, desfazer-se em espuma; Não alvejando, nunca, vela alguma E, sempre, a suspirar. Até que á luz d'uma intuição sublime D'alma arrancavas o gemido extremo De saudade, desespero e dôr!... Pois é assim que eu soffro, assim que eu gemo! Que nuvem negra o coração me opprime; Nuvem de mágoa, nuvem de ciume, Em te não vendo á hora do costume, Meu anjo e meu amor! Lisboa. * * * * * ESCREVE! Não sei o que suppôr Do teu silencio. Escreve! Quem é amado deve Ser grato ao menos, flôr! Se eu fosse tão feliz Que te fallasse um dia De viva voz, diria Mais do que a carta diz. Mas, olha, tal qual é Não rias d'esse escripto Que, pouco ou muito, é dito Tudo de boa fé. Ha n'esse teu olhar A dôce luz da lua, Mas luz que se insinua A ponto de abrazar... Pareça n'elle sim Que ha só doçura, embora: Ha fogo que devora... Que me devora a mim! Que mata, mas que dá Uma suave morte; Mata da mesma sorte Que uma arvore que ha: Que ao pé se lhe ficou Acaso alguem dormindo Adormeceu sorrindo... Porém não acordou. Esse teu seio então, Que encantadora curva! Como de o vêr se turva A vista e a razão! Como até mesmo o ar Suspende a gente logo... Pregando olhos de fogo Em tão formoso par! Oh seio encantador, Delicioso seio! Que jubilo, que enleio Libar-lhe o nectar, flôr! Eu tenho muita vez Já visto a borboleta Na casta violeta Poisar os leves pés: E n'um enlevo tal, N'uma avidez tamanha, Que a gente a não apanha Com dó de fazer mal! Pegada á flôr então No pé curvinho e molle, As azas nem as bole Toda sofreguidão! Poisou... adormeceu! Só vê, só ouve e sente O calix rescendente D'aquelle mel do céo! Pois vê com que prazer E com que ardente sêde Te havia... (que não hei-de!...) Tambem beijar, sorver! Mas eu só peço dó, Só peço piedade! Mata-me a saudade Com duas linhas só! Eu, a não ser em ti Achar allivios, onde? Escreve-me! responde Á carta que escrevi! Cançado de esperar Ás vezes quando sáio, Pensas que me distraio? Pois volto com pezar! Concentra-se-me em ti A alma de tal modo Que esse bulicio todo Nem o ouvi, nem vi! Ninguem te substitue, Porque só tu és bella! Que estrella a minha estrella, E que infeliz que eu fui! Mas devo-te suppôr Sempre indulgente e boa, Escreve-me e perdôa Meu violento amor! Respeita uma affeição Inutil mas sincera. Tu és mulher, pondera O que é uma paixão. Com sangue era eu capaz De te escrever; portanto, Tinta não custa tanto! E não me escreverás? Uma palavra, sim, Que me não amas... Queres? Em quanto me escreveres, Tu pensarás em mim! Só essa idéa, crê, Encerra mais doçura Que as provas de ternura Que outra qualquer me dê! Lisboa. * * * * * MALMEQUER Talvez em eu morrendo a teus ouvidos Chegue a noticia, que hoje os factos vôam, E oiças então os intimos gemidos Que exhalo e te não sôam. Talvez então, embora me não ames, Com esses olhos humidos de fito Na minha sombra: «Desgraçado! exclames; Amava-me, acredito. «Levou a vida amando-me: que prova Me podia alguem dar de mais ternura, Ingrata como eu era! Abri-lhe a cova, Cavei-lhe a sepultura! «Hei-de regal-a de meu pranto. Julgo Do meu dever... agradecer-lhe agora! Purificar-me em lagrimas! O vulgo Que me censure embora. «Hei-de ir dispôr um pé de saudade Na terra onde elle descançou da lida; Mostrar-lhe amor, mostrar-lhe piedade, Que não mostrei em vida!» Se fôres, meu amor! uma perpetua, E uma saudade ser-me-hia dôce! Mas só perpetua ou saudade, aceito-a, E um malmequer que fosse. Lisboa. * * * * * VIRGINIA Para se recitar no theatro do Príncipe-Real Senhores! vêde o sol; diariamente Nasce, cruza esse espaço e, no poente, Acaba de brilhar. É util, é preciso, é necessario, Não é pois inconstante, não é vario; É certo, é regular! Hervas que nutrem, animaes que comem, E a imagem de Deus--que falla--o homem, Sem essa luz, dizei: Vegetavam acaso, existiriam? Os echos d'esses valles repetiam Alguma voz? O que!... Seria tudo um ermo escuro e mudo; Tudo insensivel, solitario tudo! Mas Deus cria essa luz; E um mar sem praias de silencio e morte, Sêres de toda a casta--toda a sorte, Produz e reproduz! Sim, essa luz benefica converte, Por mysteriosa alchimia, frio, inerte, Imperceptivel grão Em tenras hastes, em botões mimosos, Folhas, flôres e fructos saborosos Que recamam o chão! Mas julgaes vós agricola sómente A mão do creador omnisciente? Pergunta singular! Basta só vêr a ondeada trança Com que elle adorna a virgem que vos lança O seu primeiro olhar! A terra é de côr varia, a planta, verde: Porque e para que? O que se perde Em ter tudo uma côr? O que se ganha em ser tão bem pintada, Symetrica, mimosa, perfumada Uma ephemera flôr? É que Deus é artista! e noite e dia E céo e terra e mar o denuncia... Vêde nascer o sol! Pôr-se alta noite a lua encantadora... Em quanto ao mesmo tempo canta e chora Ao longe o rouxinol! Deus é artista, sim; Deus ama o bello, Mais talvez do que o util. O desvelo Com que elle trata a flôr! Antes de abrir... que mãi tão carinhosa Resguarda, mais solicita que a rosa, Um seu botão d'amor! Nem podia sahir obra incompleta Das mãos de Deus: geometra e poeta Em summo grau, traçou A compasso a abobada celeste; Mas de que lindas nuvens a reveste Que ao vento tomam vôo! Creou, de fogo, o sol--o grande astro! E creou, não de fogo, d'alabastro A sua bella irmã --Sombra apenas do sol, desnecessaria, Luz phantastica, vaga, solitaria, Inutil, fátua, vã... Mas luz intima! luz do sentimento! Luz d'amor e de fé! que inspira alento A nossos corações! Unica luz, á qual se mede o fundo D'esse concavo mar... d'esse outro mundo... D'esse mundo de soes! Porque se ao sol deveis fructos e flôres, Á lua deveis mais, deveis amores... Deveis... como direi? Esta entranhavel, vaga saudade De não sei que melhor realidade, Que o mundo que se vê... Quantas vezes, depois da lida insana D'um dia, n'este mar da vida humana, Vendo surgir no céo Essa luz melancolica e suave, Eu acho então, e com que allivio, a chave D'este mysterio meu!... D'este amor por phantasticos amores... Comtudo mais leaes e duradores Que os d'esse mundo são! D'este mundo de sombras... até prestes, Sombra tambem, á sombra dos cyprestes Achar satisfação! E eu digo, digo á lua scismadora Com os olhos risonhos de quem chora Pranto consolador: Se pois Deus te creou porque eras bella... O que vale o sol mais do que uma estrella? Um rei do que um pintor? Ao vêr-te, dôce lampada, suspensa De vaporosa nuvem, n'essa immensa Abodada dos céos, Pareces-me o thuribulo sagrado Com os rolos de incenso evaporado Em tua honra, oh Deus! E a minha vista sofrega acompanha Esse clarão phantastico á montanha Ou da terra ou do mar, Onde, acabada a obra do seu dia, Astro d'amor e de melancolia, Se deita a descançar. E eu descanço tambem; filha da arte... Cumpre-me a mim, oh lua, contemplar-te! E pergunte-me alguem: --Tu que fazes no mundo, mulher futil? --O que Deus faz... na flôr, na lua inutil... Sou artista tambem. Lisboa. * * * * * PRIMEIRO PSALMO DE DAVID Bemdito o que não cahe em se guiar Por conselhos de gente depravada; E em vendo que vai mal, muda de estrada, E nunca se demora em mau lugar; Que o seu empenho é só unicamente A lei de Deus, que estuda noite e dia. Como a arvore ao pé d'agua corrente, Dá a seu tempo o fructo que devia. Nunca lhe cahe a folha; empresa sua Sahe por força conforme o seu intento; Em quanto o impio, o mau trabalha e sua, E é sempre como o pó, que espalha o vento! No tribunal, onde ha-de ser ouvido, Não conte com sentença a seu favor; Que não entra no numero escolhido Dos justos, dos amigos do Senhor. O justo, Deus bem sabe o seu caminho, E guia-o, não o deixa andar sósinho: E o caminho do mau, pelo contrario, É beco sem sahida e solitario. Messines. * * * * * SEGUNDO PSALMO DE DAVID Porque anda o mundo todo enfurecido, Se esforços contra Deus são todos vãos? Os grandes, mais os reis, deram as mãos Contra o Senhor, contra o seu Ungido, --Estas correntes, é despedaçal-as, Este jugo atirar com elle fóra! E lá cima no céo, o que lá mora Não faz mais que sorrir-se de taes fallas. Mas em lhe dando a ira, aonde então Se hão-de metter, com medo, os desgraçados! Coroou-me rei no alto de Sião, Cumpre-me publicar os seus mandados. «Tu és meu filho; disse-me o Senhor: Gerei-te hoje; pedir com confiança! Verás o mundo todo ao teu dispôr, Terras e povos, como propria herança. «Vara de ferro para os ir guiando, E fazel-os guardar-te obediencia; E elles de barro mal cozido e brando Que os partas em te oppondo resistencia.» Agora pois vós outros, reis, juizes, Reparai no que eu digo, e vêde lá; Servi a Deus, e dai-vos por felizes Cumprindo á risca as ordens que elle dá. Tomai os meus conselhos; ou, senão, Tende já como certa a perdição. Que em se elle irando, é como um raio; aquelle Que o despreza e não crê, infeliz d'elle! Messines. * * * * * CANTICO DOS CANTICOS DE SALOMÃO Para os corações puros tudo é puro. S. Paulo a Tito. I CHEGADA A SULAMENSE --Tomára já ter o gosto De o sentir beijar-me o rosto! CORO DE VIRGENS --E onde ha mulher que te exceda? Só esse collo embebeda. O aroma que elle exhala, Nenhum balsamo o iguala. 2.º CORO --O teu nome, fallar n'elle, Só fallar n'elle é tão dôce Como se um oleo nos fosse Escorrendo pela pelle. SALOMÃO --Olha como todas ellas Te estimam tanto, as donzellas. A SULAMENSE --Sou tua, leva-me, vamos. CORO --E nós, que te não largamos, Te iremos correndo atraz Pelo rasto de perfume, Que deixas por onde vás, Das pomadas com que dás No corpo, como é costume. A SULAMENSE --Já el-rei me manda entrar Para a sala do jantar. CORO --Para saltar de alegria E festejar este dia, A nós basta-nos lembrar Que esse teu seio embebeda; Nem ha mulher que te exceda. 2.º CORO --Quem te vê seja quem fôr Fica bebado d'amor. A SULAMENSE --Sou trigueira mas formosa, Moças de Jerusalem! Senão vêde o pavilhão Que arma em campo Salomão, Se ha coisa mais preciosa, E por fóra a côr que tem; Vêde as barracas dos moiros, Por dentro tantos thesoiros, Por fóra negras tambem. Não vos dê pois isso pena, Ter assim a côr morena: Minha mãi mandou-me pôr, Por culpa de meus irmãos, De guarda á vinha, o calor Queimou-me o rosto e as mãos: E eu, a vinha, é escusado Dizer-vos que nem eu tinha Senão agora o cuidado De estar a guardar a vinha. Ah! para que banda vás Com o gado, meus amores! E pela folga onde estás! Bem vês os outros pastores, E a gente não adivinha. Eu não hei-de andar atraz D'esses rebanhos sósinha. SALOMÃO --Ah rainha das mulheres! Olha como tu te enganas, Que medo tens das cabanas, Que medo tens dos rebanhos, Que medo tens dos estranhos? Não te dê isso cuidado, Anda por onde quizeres Tambem guardando o teu gado. Em te vendo, mesmo só, Toda a gente se desvia, Como da cavallaria Dos carros de Pharaó. CORO --Dás no rosto certo ar D'aquella graça da rola, Que até encanta, arrebata. A garganta pódes pôl-a Ao pé do melhor collar. 2.º CORO --Um te havemos de nós dar De oiro, ás pintinhas de prata, Que é lindo, e has-de gostar. A SULAMENSE Já não sei pelo que aguardo Que estando el-rei a jantar Lhe não entorno por cima Esta redoma de nardo Que é um balsamo de estima. Mas ha outro mais perfeito, E com o qual me perfumo: Eu a myrrha que costumo Trazer aqui em meu peito, É mesmo aquelle a quem amo. Nunca apanhei outro ramo Nem outro alcanfor colhi Nas hortas dos arredores Da cidade de Engaddi. SALOMÃO --Como és bella, minha amante! Terá a pomba esse olhar? Outro não ha semelhante. A SULAMENSE --E quem mais bello e galante Mais formoso, meus amores! E mais de se cubiçar? SALOMÃO --Vês, o nosso leito é este, Armado todo de flôres: E olha o tecto é de cypreste, Portas de cedro, tambem; Aqui não entra ninguem. A SULAMENSE --Sou a rosa de Sarão, A açucena do val. SALOMÃO --Amada do coração, Entre as mais és tal e qual Uma açucena entre espinhos. A SULAMENSE --E entre os mais o meu amado A que ha-de ser comparado? Vês tu no bosque a maceira? És assim d'essa maneira. Por lograr os teus carinhos E boa sombra ha já muito Que eu andava a suspirar: Com effeito sombra e fructo Nada deixa a desejar. Elle deu-me do melhor Que tinha na sua adega; Mostrando-me assim primeiro Como faz quem tem amor. Trazei-me flôres de cheiro, Que estou como tonta e cega... Algum pomo, que esmoreço... Já um braço me elle passa Pelos hombros e me abraça Pela cinta... desfalleço... Ah desfalleço d'amor! SALOMÃO --Pela corça e o veado, Moças de Jerusalem! Não a acordeis, cuidado! Deixar dormir o meu bem, Um somno bem socegado. II ENTREVISTA A SULAMENSE --Quem é que eu oiço bradando? Oiço uma voz e por força Que é a voz d'elle esta voz: Ah! lá vem além saltando Montes e valles, nem corça Nem veado é mais veloz. Eil-o detraz da parede Além já da outra banda E o que elle faz, como elle anda A vêr no vallado todo E na cancella se ha modo De me pôr olho: ora vêde. SALOMÃO --Oh minha amada! depressa Vem vêr o campo, anda, vem: Mettida em casa, meu bem! Que demora tua é essa? Foi o inverno passando, Até que a chuva acabou: Veio a herva rebentando, Revestiu a terra toda, Chegou o tempo da poda, Ouviu-se a rola arrulhando, O figo vem já inchando E a vinha está já em flôr: Pelo que estás esperando? Quando has-de tu, meu amor! Andar então passeando? Ouve lá que estamos sós, E aqui não ha quem nos oiça: Vês esta fresta? é um gosto Até pela pedra ensossa Vêr assomar o teu rosto, Ouvir essa linda voz. A SULAMENSE --Toda em flôr, como está bella! Mas lá o ter flôr que monta? Se as boas das raposinhas A tomam á sua conta, Depois a uva que é d'ella? Bons laços se lhe hão-de armar, Que ellas dão cabo das vinhas Se ninguem as apanhar. Tu és meu; e eu tambem Sou tua, de mais ninguem. Nós somos como um casal De corcinhas, com effeito; Andamos sempre a vêr qual Guarda ao outro mais respeito E lhe ha-de ser mais leal. Logo ali de manhãsinha, Ou pela fresca, á tardinha, Quando a corça e o veado Volta aos valles de Belher, Cá ficas sendo esperado: Não te esqueça, haja cuidado, Vê lá o que has-de fazer. III SONHO A SULAMENSE --Não sei bem que sonho tive Esta noite, que acordei Sobresaltada, e que estive Ainda apalpando a cama Á busca de quem me ama E a quem ama; não achei: Levantei-me, rodeei A cidade toda em roda, Corri a cidade toda, Busquei tudo, não achei. Na rua pergunto á ronda: O meu amante que é d'elle? Não ha ninguem que responda. Vou andando; a poucos passos Vi vir um vulto: é aquelle. Chega e digo-lhe depois De o apertar nos meus braços: Quem se ama como nós dois, Só em mudando de estado É que vive descançado. Anda d'ahi, vamos pois Ao quarto mesmo onde dorme Minha mãi que me gerou (Que eu tua ainda não sou, Nem tu és meu, meu amigo!) A pedir a nossos paes A sua benção, conforme Costumam fazer os mais, E é já um costume antigo. SALOMÃO --Pela corça e o veado, Moças de Jerusalem! Não a acordeis, cuidado, Deixai dormir o meu bem Um somno bem socegado. IV NOIVADO CORO --Oh que mulher tão perfeita A que vem além andando! Vem espalhando um perfume E é tão airosa a andar! Parece quando se deita Incenso e myrrha no lume Que se vai desenrolando Aquella nuvem no ar. 2.º CORO --Realmente é de invejar; Mas haja alguem que se afoite... Sessenta homens armados Dos mais desembaraçados Manda Salomão ficar De vigia toda a noite. CORO --É tudo á satisfação E gosto de Salomão. O andor onde elle sai, De tudo de que é composto, Cedro do Libano, olhai, É a coisa mais barata: Pernas e braços de prata, De oiro o mais fino o encosto; Onde põe os pés velludo: Não fallando em diamantes E pedras as mais brilhantes Que lá isso excede a tudo. 2.º CORO --Além vem já Salomão: Lá vem elle já coroado Com a corôa do noivado Que a mãi lhe poz na cabeça Pela sua propria mão. Hoje é o dia fallado: Moços, moças de Sião! Assomai-vos já depressa. SALOMÃO --Que enlevo, que formosura! A pomba não tem de certo No olhar tanta doçura: E fóra o que anda encoberto. O cabello, em quantidade E tamanho, é singular; E não me lembra senão Das cabras de Galaad Que lhes rola pelo chão Em ellas indo a andar. Os dentes, em tu abrindo A tua boca, que lindo! Nem um rebanho d'ovelhas Todas brancas e parelhas Quando, em sendo tosquiadas, Veem saindo do banho D'uma em uma, enfileiradas, E atraz d'ellas, cada uma Seus dois gemeos d'um tamanho, Sem ser maninha nenhuma. Pois a bocca é comparada A uma fita encarnada. A voz ouvil-a é um gosto: Parte a romã pelo meio Verás as rosas do rosto; E fóra no que eu receio Fallar que me não é dado. O pescoço, pensa a gente, Em o vendo de collares, Que é a torre exactamente De David, n'esses ares, De baluartes, e toda, Lá cima, escudos á roda. Os peitos é um casal De corcinhas, que o seu pasto São açucenas do val: Nada mais timido e casto. E deitam um cheiro á goma, Da myrrha mais do incenso, A ponto que ás vezes penso Que elles são duas collinas Por onde aquellas resinas Espalham aquelle aroma. És formosa sem senão, Amada do coração! E que fazias tu lá Pelo Libano, pombinha! Deixa o Libano, anda cá. Vaes ser coroada rainha No mais alto d'Amaná Ou d'Hermão ou de Sanir, Onde ha leões e onde ha Leopardos... deves vir. Trespassou-me o coração O teu olhar; o cabello Prendeu-me como um grilhão. O teu peito, basta vêl-o, Para embebedar d'amor. E só o cheiro que exhala O teu corpo, não ha flôr, Não ha rosa, não ha cravo Capaz de cheirar melhor. A tua bocca é um favo De doçura quando falla; A tua lingua, uma sopa De leite e mel; essa roupa Cheira a incenso, regala. Não ha nada comparado: Agua a mais pura e suave De fonte fechada á chave, Não é mais suave e pura. Esse rosto, essa figura... E só o bem que tu cheiras! Não me parece senão Um jardim todo plantado De romeiras e maceiras, Canfora, nardo, assim como Açafrão, canna de cheiro Aloes, myrrha e cinnamomo: O que ha no Libano em fim; Não ha fruta nem aroma, Que se ahi não cheire e coma. És a fonte d'um jardim Toda pureza e frescura: Torno d'agua que rebenta Inda mais viva e mais pura Lá no Libano, e ninguem Lhe tem mão nem aguenta A força com que ella vem. Fizesse já sul e norte No meu jardim, de tal sorte Que alegretes e pomares Andasse tudo nos ares. A SULAMENSE --É natural que tu comas Da fruta do teu jardim. SALOMÃO --E que duvida que sim? Vamos primeiro aos aromas; O mel em favo depois E mais o vinho e o leite. Hoje é dia de banquete, Amigos do coração! É comer-lhe por quem sois E beber-lhe até mais não. V SURPREZA A SULAMENSE Estava a dormir... que importa? Velava o meu coração. Oiço o meu amado á porta: --Ah formosa sem senão, Minha pomba, minha amada! Trago a cabeça molhada, E os anneis do meu cabello Todos escorrendo orvalho, Estou mais frio que um gelo. --Dá-me isto agora um trabalho... Despi-me, lavei os pés, Estou na cama deitada, E é uma pena, bem vês, Vestir-me agora outra vez, Andar inda levantada. Vai elle empurra o postigo, E eu assusto-me de modo Que, na verdade vos digo, Tremia-me o corpo todo. Salto da cama exhalando Um cheiro delicioso: Eu tinha-me estado untando Com um oleo precioso E inda as mãos me iam pingando. Abro a porta, eis senão quando Elle foge de repente... Eu só de lhe ouvir a falla Fui ás nuvens de contente. E em paga de tudo, abala; Bradei-lhe, não me acudiu, Vou por essas ruas fóra Á busca d'elle, até'gora: Parece que o chão se abriu... Encontro a ronda, espancou-me; Um dos da guarda á entrada Da cidade, esse, roubou-me A capa onde ia embrulhada. Peço-vos isto por bem, Moças de Jerusalem! Contai tudo ao meu amado, Que elle é por amor de quem Estou n'este triste estado. CORO --O teu amado... responde, Formosura sem igual! Ha tantos onde escolher Que é necessario um signal. Qual é o signal por onde Havemos de o conhecer? --Eu vos digo: o meu amado, D'aquellas côres no mundo, Estou que não ha segundo; É muito branco e córado. A cabeça é um thesoiro Do que ha de mais principal; Que a sabedoria vale Mais do que a prata e o oiro. De negro que é o cabello, Vêr um corvo, é mesmo vêl-o. Os olhos, aquelle olhar, Ha n'elles uma doçura, Que não sei a que os compare; Só sendo a um casalinho De pombas, que estão no ninho, Todas pureza e candura. As suas faces rosadas, Rescendem como um canteiro D'aquellas plantas de cheiro De que fazem as pomadas. A bocca, digo a verdade, Que a açucena mais pura Cheia da myrrha melhor Não apresenta a doçura, Pureza e suavidade Das fallas do meu amor. Aquelles dedos, vereis, São uns canudos de anneis! O ventre d'elle é assim Como um cofre de marfim. As pernas, de musculosas, São columnas magestosas E de marmore inteiriço Em bases de oiro maciço. É o Libano em altura, É como um cedro na matta A sua bella figura. É tão suave, tão pura A sua voz, que arrebata. Todo elle é singular E todo de cubiçar. Eil-o ahi retratado, Moças de Jerusalem! E não só o meu amado; O meu amante tambem. CORO --Ah rainha das mulheres! Se sabes para que banda Elle iria o teu amigo, Anda d'ahi, vamos, anda: Nós imos todas comtigo Á busca d'elle se queres. A SULAMENSE --Elle parece-me a mim Que ha-de andar no seu jardim, A apanhar açucenas, Que é do que elle gosta apenas. SALOMÃO --Oh que formosa, meu bem! Não ha cidade afamada, Nem Thirsa ou Jerusalem, Mais bella que a minha amada. Mettes mais respeito andando, Que um exercito avançando. Os olhos faiscam fogo. Tira de mim essa vista, Que ao depois fugi eu logo Porque não ha quem resista. O cabello, em quantidade E tamanho, é singular! E não me lembra senão Das cabras de Galaad, Que o arrastam pelo chão, Em ellas indo a andar. Os dentes, em tu abrindo A tua bocca, que lindo! Nem um rebanho d'ovelhas, Todas brancas e parelhas, Ao vir sahindo do banho D'uma em uma, e cada uma Seus dois gemeos d'um tamanho, Sem ser maninha nenhuma. As faces não ha de certo Assim casca de romã De cor tão linda e tão sã. E fóra o que anda encoberto. És tão formosa, vê lá, Que as rainhas são sessenta, As concubinas oitenta, Donzellas, quem é que as dá Todas contadas? ninguem. Pois e de quantas possuo, A minha pomba, o meu bem, A minha mimosa, és tu. E o mesmo dizia já Lá em casa tua mãi, Com tantas filhas que tem. Quando chegaste, as donzellas, Concubinas e em summa As rainhas, todas ellas Sem excepção de nenhuma, Gritaram todas á uma: Viva a rainha das bellas! VI PASSEIO CORO --Que linda mulher aquella! Nem a aurora lhe ganha. A lua não é tão bella Nem a luz do sol tamanha; Mette mais vista só ella Que um exercito em campanha. A SULAMENSE --Nunca tive um susto igual! Ia á horta das nogueiras, Ia passear ao valle, Vêr se tinha flôr a vinha E já romãs as romeiras; Mas a multidão que vinha Atraz de mim era tal Que não vi nada, e tão cedo Apanho tamanho medo. CORO --Oh não fujas, anda cá, Sulamense! deixa vêr Belleza como não ha No mundo nem póde haver. SALOMÃO --Arrebata na verdade, Mas como um canto de guerra, Porque ao mesmo tempo aterra Este ar e magestade. O teu andar, que nobreza! E tem o pé uma graça Assim calçado, princeza! Os joelhos, que perfeitos! Não ha ourives que faça Eixos de oiro mais bem feitos. Umbigo, qual é a taça, D'estas taças pequeninas Por onde a gente costuma Beber bebidas mais finas, Tão redondinha? Nenhuma. É o ventre de tal modo Casto e fecundo, que apenas Um monte de trigo, todo Rodeado de açucenas Me parece haver no mundo Assim tão casto e fecundo. O teu seio é um casal De corcinhas, que o seu pasto São açucenas do val: Nada mais timido e casto! Lembra-me o pescoço a mim, Uma torre de marfim E os olhos, esses então Os dois lagos de Hesebão. Vês a torre que apparece Lá no Libano, e que diz Para Damasco? parece Na lindeza esse nariz. A cabeça vêl-a toda Por cima das mais, é bello, Como a serra do Carmelo, Toda collinas á roda. O cabello é tal e qual Um grande manto real! É tudo uma perfeição, Amada do coração! Vêr-te é vêr uma parreira Armada n'uma palmeira; E lá em cima os teus peitos, No tamanho e no feitio, Dois cachos d'uvas perfeitos Que a parreira produziu. E eu disse d'esta maneira: Dois cachos d'uvas tão bellos Hei-de ir lá cima colhel-os; Que bem se vê que a doçura Corresponde á formosura; E que a tua bocca é pura E a respiração é sã Como o cheiro da maçã Quando se apanha madura. --Como é suave e me encanta O que me estás a dizer! A voz da tua garganta Embebeda como o vinho, D'esse que a doçura é tanta Que se costuma beber Aos sôrvos, devagarinho. És só meu e eu tambem Sou tua, de mais ninguem. Anda com a tua amada Morar para o campo, amor! Iremos de madrugada, Logo ao romper da manhã, Em se a gente levantando, Vêr se a vinha já tem flôr, Se está em flôr a romã E se a fruta vai vingando. Alli é que eu hei-de então Abrir-te o meu coração. Estamos na primavera, A mandrágora já cheira, E em minha casa, estar lá, É como estar n'uma horta: Mesmo ao pé da nossa porta Temos quanta fruta ha. E o teu quinhão, meu amado! Assim do anno passado Como da que vem agora, Esse está sempre guardado. Ouvisse-te eu n'esta hora Chamar mãi á minha mãi! Como se tu com effeito Fosses criado ao seu peito Assim como eu fui tambem: Então já eu te beijava Ás claras e te abraçava Sem vergonha de ninguem. Vamos aonde ella dorme, A pedir a nossos paes A sua benção, conforme Costumam fazer os mais, E depois seja o que fôr É só mandar, meu amor! Verás como te hei-de dar D'um vinho delicioso E d'um licor precioso, De romã, que has de gostar. ......................... Um braço já me elle passa Pelos hombros... e me abraça Pela cinta... o meu amado! --Deixai-a dormir, cuidado, Moças de Jerusalem! Deixai dormir o meu bem Um somno bem socegado. ...................... Messines. * * * * * Ouviste-me não sei quê Trincolejar n'algibeira, Acudiste mui lampeira, Que me amavas. Já se vê. Tens amado mais de mil, Não era agora o primeiro. Mas pensas que era dinheiro? É a pedra e o fuzil. Messines. FIM * * * * * INDICE A poesia 1 A uma carta anonyma 4 Duas rosas 5 A uma mulher 8 A D. Candida Nazareth 11 Amor 14 A donzella e o musgo 17 Ultimo adeus 23 Rosas 26 Rosa e rosas 28 A Hermann 30 Presentimento 33 Marina 36 I--Apparição 36 II--Saudade 39 III--Eternidade 41 IV--... 21 de setembro 42 N'um album 46 Beijo na face 49 Thuribulo suspenso inda fluctuo 53 Luz d'intima influencia 55 Resposta 58 Pois se o homem, se anjo e nume 59 Flôr e borboleta 62 Remoinho 64 Amores, amores 71 Fabula 73 Boas noites 74 Gaspar 76 Deixa que ao romper d'alva o cravo abrindo 77 Carta 79 Dá-me esse jasmim de cera 85 Margarida 87 No leito nupcial 90 A minha mãi 93 Beatriz 94 Innocencia 97 A Escriptura Sagrada 101 A um Nuno 104 A *** 105 Luz da fé 107 Resposta 112 Meu casto lirio 113 Ventura 116 Arida palma 117 A uns olhos azues 119 Heresta 121 Fragmento 129 Se ao enlaçal-a no peito 145 Nunca me ha-de esquecer 146 Dinheiro 147 Duvida 150 Caturras 154 Foi-se-me pouco a pouco amortecendo 160 Mãi e filho 170 Toca a capello, vou vêl-o 173 Amas, pobre animal! e tens tu pena? 174 Não! 175 Na folha d'um romance 181 Lagrima celeste 182 Descalça! 185 Adeus! 187 A Victoria Colonna 190 N'um convento 191 Sonho 193 Á vista d'um retrato 196 A lua 198 Joven captiva 200 Mulher! quando nos braços 203 Um beijo 205 Francisca de Rimini 207 Paixão 212 Escreve 214 Malmequer 219 Virginia 221 Primeiro psalmo de David 227 Segundo psalmo de David 229 Cantico dos Canticos de Salomão 231 I--Chegada 231 II--Entrevista 239 III--Sonho 242 IV--Noivado 244 V--Surpreza 251 VI--Passeio 259 Ouviste-me não sei quê 266 End of the Project Gutenberg EBook of Flores do Campo, by João de Deus *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK FLORES DO CAMPO *** ***** This file should be named 27599-8.txt or 27599-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/7/5/9/27599/ Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was produced from scanned images of public domain material from the Google Print project.) 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If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. 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It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email business@pglaf.org. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director gbnewby@pglaf.org Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.net This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.